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Helvécio Ratton se debruça sobre o universo de Murilo Rubião

Filme O Lodo é baseado em conto do escritor mineiro e foi lançado na Mostra de Cinema de Tiradentes, no último domingo (26)

Por Alex Bessas*
Publicado em 29 de janeiro de 2020 | 11:19
 
 
 
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De pronto, “O Lodo”, novo longa-metragem do diretor mineiro Helvécio Ratton, que teve sua estreia mundial no domingo, 26, na 23º Mostra de Cinema de Tiradentes, chama atenção pela presença da capital mineira como pilar da narrativa. Ultrapassando o âmbito de cenário, a cidade interage com os personagens. “Mais que mineiro, sinto que o filme tem um DNA belo-horizontino”, confirma à reportagem o cineasta, que, desta vez, mergulhou no universo do escritor Murilo Rubião (1916–1991) – em particular, no conto homônimo.

“Não o conheci pessoalmente, mas sempre o vi como um personagem de si mesmo, saído de suas próprias histórias, circulando no (edifício) Maletta, na (o restaurante) Casa dos Contos, perto da Imprensa Oficial... Sou uma pessoa que cresceu em BH. Quis fazer um filme belo-horizontino – e com uma ótica bem específica. Eu acho que existe essa lacuna. BH é pouco filmada, mesmo sendo altamente cinematográfica”, especifica. 

Para a escolha das locações, o centro foi o ponto de partida. “O prédio que aparece como o da companhia de seguros no qual o protagonista trabalha, por exemplo... Gostei muito da forma quadrada dele (citando o Hotel Itatiaia, nas proximidades da praça da Estação), que tem uma conexão com as proporções da projeção. Queria criar uma condição claustrofóbica para o personagem, sempre encurralado por aquelas linhas, um jeito de falar dessa rotina que está esmagando a vida dele”, detalha. A partir daí, Ratton foi descobrindo outros cenários: “Aquela passarela, na qual ele mergulha, nunca a tinha percebido desse ponto de vista”. 

Outro chamariz de “O Lodo” é ter, no elenco, atores do Grupo Galpão. “Foi curioso que a minha primeira escolha não foi o Galpão, mas o Eduardo Moreira como protagonista. Ele fez um pequeno papel em ‘Batismo de Sangue’ (2007), e gostei imensamente. Quando comecei a pensar em ‘O Lodo’ – na verdade, na obra de Rubião (Ratton trabalhou 15 episódios para uma série, entre eles ‘O Lodo’), sempre vi o Eduardo como o meu Manfredo. Mas, daí, o Galpão me ajudou a criar uma unidade no elenco. Comecei a fazer leituras com eles e a selecionar quem achava que se adequaria ao filme. Porque essa coisa de casting é delicada. E, posso dizer agora: acertei ao fazer com o núcleo do Galpão e, depois, ir agregando outros atores, que não do grupo, como o Renato Parara ou o próprio Rodolfo Vaz (egresso do Galpão). A cumplicidade, por exemplo, do Eduardo com a Inês Peixoto (eles são casados), me ajudou muito”, avalia.

O universo de Rubião

Ao falar especificamente sobre Rubião, Ratton opta por fazer uma distinção entre o realismo do escritor e o do colombiano Gabriel García Márquez. “Quando a gente pensa no realismo fantástico na literatura latino-americana, logo se lembra do García Márquez, que é da ordem do maravilhoso, onde as coisas transbordam, em que uma magia vem. O estilo de Rubião é diferente, muito mais próximo do (Franz) Kafka, em que o absurdo entra com naturalidade na vida das pessoas. Em ‘A Metamorfose’, temos um cara que, ao acordar, se transformou em uma barata – mas a vida segue normal. Ele está em casa com a família, com os colegas de trabalho. O mundo não se transformou. Sinto que a emergência do fantástico é muito mais forte quando ela acontece em um universo realista. Então, essa foi a chave para trabalhar o filme, trabalhar as locações de forma muito realista, e é nesse lugar que o fantástico acontece e ganha força”, explica.

No conto, publicado no livro “O Convidado”, o personagem central, após consultar um psicanalista, Dr. Pink, se vê envolto em bizarros acontecimentos. Em seu peito, por exemplo, uma ferida se abre. “Há um lodo que acaba extravasando pelos mamilos e que é quase metafórico, algo que está dentro e emerge”. Vale dizer que Helvécio Ratton é formado em psicologia, embora nunca tenha exercido a profissão, porque se interessava mais em “ler a psicanálise, ler Freud”.

“Foi ótimo ter feito o curso, é algo que me empresta uma lupa para olhar o mundo. No caso de ‘O Lodo’, percebia o cruzamento de três vertentes: por um lado, Kafka; por outro, Dostoiévski, muito ligado à culpa que persegue o personagem e o paralisa; e, por fim, Freud, com a ideia do retorno do que é reprimido. Há uma frase do Dr. Pink: ‘Nada desaparece para sempre, um dia tudo volta’. Isso é quase uma sentença”, pontua.

Ato político

Fazendo um paralelo com o Brasil atual – “que tem também um lado de absurdo insurgindo diariamente nas coisas que são ditas, nas decisões tomadas por parte de nossos governantes” –, Ratton avalia que seu filme reflete muito essa estranheza. Justamente por isso, decidiu lançá-lo em Tiradentes. “Temos que afirmar o nosso cinema aqui! E em uma mostra que é importantíssima para o Brasil e que também está sendo pressionada e sufocada. Foi uma decisão política terminar o filme a tempo (o longa foi finalizado há uma semana da exibição) e trazê-lo primeiro para Tiradentes”, afirma.

* O repórter viajou a convite da Universo Produções.

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