Música

Hot e Oreia: a nova geração do rap mineiro

Duo de BH lança o segundo álbum, 'Crianças Selvagens', com direito a sample de Caetano Veloso, misturando olhar crítico e irreverente com altas doses de humor e protesto

Por Letícia Fontes
Publicado em 26 de setembro de 2020 | 03:00
 
 
 
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O duo Hot e Oreia, velho conhecido do público de rap de Belo Horizonte, despontou com um estilo inusitado ao tratar assuntos sérios com bom humor, uma das especialidades da dupla. Após o sucesso no streaming com o álbum de estreia, “Rap de Massagem” (2019), os mineiros acabaram de lançar um novo disco, “Crianças Selvagens”, e têm conquistado cada vez mais respeito no território nacional aliando altas doses de carisma e sarcasmo. Nesta semana, inclusive, Mario Apocalypse (Hot), 27, e Gustavo Aguiar (Oreia), 27, concorreram à categoria “Clipão da Porra” no MTV Miaw 2020, com o vídeo da música “Eu Vou”, ao lado de nomes como Manu Gavassi (a vencedora), Ludmilla, Pabllo Vittar e Anavitória.

"Foi a primeira vez que concorremos a um prêmio dessa dimensão. Claro que nunca estamos satisfeitos e queremos sempre mais, mas é muito mais do que prêmio, é o reconhecimento de um trabalho. É muito legal para a gente ver Belo Horizonte em peso nessas premiações, porque BH é foda há muito tempo, sempre tivemos artistas originais, mas só de um tempo para cá que isso tem sido reconhecido", avalia Hot.

"Belo Horizonte é o berço do Duelo de MCs, que é o maior encontro de hip hop não apenas do Brasil, mas do mundo. O maior rapper do momento, o Djonga, é daqui. Temos a maior banda pop também, a Lagum. Ver todos esses nomes concorrendo ao prêmio juntos também é um marco para a cena cultural de Minas", completa o rapper, que só no ano passado contabilizou mais de 6 milhões de reproduções no Spotify e quase 24 milhões visualizações no Youtube. 

Nascido em berço artístico, Hot, neto de Álvaro Apocalypse (1937-2003), fundador do grupo de teatro de marionetes Giramundo, foi criado no bairro Floresta, na região Leste de Belo Horizonte. Já Oreia, que ganhou o apelido por causa das orelhas de abano, nasceu em Medina, no Vale do Jequitinhonha. A dupla, que como muitos rappers começou nas batalhas de MCs, se conheceu debaixo dos viadutos da capital. De lá para cá, o trabalho, nos últimos dez anos, tem sido aliar o protesto ao bom humor.

“Acho que o rap estava perdendo um pouco o foco. Não tem problema falar de festas ou outros assuntos, mas é preciso resgatar de onde o rap nasceu, que é dos movimentos sociais. Rap é protesto. Por isso, não tem como o trabalho desgrudar de política. Nós somos da geração da Praia da Estação”, ressalta Hot.

Por isso, em seu mais novo trabalho, a dupla se preocupou justamente em trazer para o debate temas contemporâneos, como educação sexual e respeito às religiões afro-brasileiras e às minorias. Com direção de Daniel Ganjaman, produtor responsável por trabalhos de artistas como Sabotage e Planet Hemp, as dez faixas produzidas por Rafael Fantini mesclam beats de Tropkillaz, Vhoor, Coyote e Deekapz e conta ainda com as participações do rapper fluminense Black Alien e da também mineira Naty Rodrigues. O destaque do álbum vai para os samples com a voz de Caetano Veloso (“Presença”) e Nelson Ned (“Domingo”). 

“Quisemos trazer neste trabalho a questão de ser criança, a busca por um ser que talvez a gente nunca mais consiga ser de fato, mas que nos vemos obrigados a continuar a ser: alegres, plurais e atentos às mudanças. Quisemos correr atrás dessa criança que fomos nos duelos de MCs, mas ao mesmo tempo já estamos trilhando para a vida adulta”, pontua o rapper sobre “Crianças Selvagens”.

E o motivo da reflexão tem explicação. Hot está prestes a se tornar pai. “Agora essas questões começam a ter um peso ainda maior. Me pego pensando em qual legado e qual mensagem quero deixar para o mundo. Ficar mais conhecido traz também a responsabilidade de pautar esses assuntos”, afirma. “A gente coloca esses temas como um canto, uma força, mas é tudo só um lembrete. São pautas que, por mais que não sejam a sua realidade, como a ligação com as religiões africanas, é algo que está aqui, é Brasil, um país plural”, conclui.  

Origens
Acumulando parcerias com grandes nomes, como Luedji Luna e Djonga, além dos cantores da banda Rosa Neon, Luiz Gabriel Lopes e Marina Sena, por muito tempo a dupla Hot e Oreia viveu com a sensação de não pertencimento, de sempre ter que se encaixar em rótulos. Mas os mineiros preferiram manter as origens plurais, engajadas e anárquicas. 

Pensando nisso, para criar o segundo disco, os rappers aproveitaram a quarentena, viajaram para o Vale do Jequitinhonha e ficaram longos meses na casa do pai de Oreia. “O primeiro disco a gente fez sem dinheiro, na raça mesmo. Já nesse segundo, o maior problema foi a questão da finalização. Já estávamos trabalhando nele antes da pandemia, mas tivemos que esperar o melhor momento para lançar, fazer a divulgação dos clipes. Foi um parto, mas no final sempre dá tudo certo”, comemora Hot. 

Com referências em nomes consagrados da dramaturgia brasileira, como Jorge Amado e Ariano Suassuna, além de ícones da MPB, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, a preocupação dos mineiros desde sempre tem sido aliar a estética ao bom humor. E foi assim, associando música, literatura, artes cênicas e cultura de rua ao que já estava no sangue que nasceu a ideia do clipe “Eu Vou”, gravado em Sabará, em parceria com Djonga, que traz paródias de cenas do filme “O Auto da Compadecida” (2000), de Guel Arraes. No clipe, a dupla se caracteriza de Chicó e João Grilo enquanto tecem críticas ao governo Bolsonaro. O trabalho, dirigido também pelos mineiros Belle de Melo e Vito Soares, já ganhou, inclusive, o prêmio de melhor videoclipe no Music Video Festival.

Segundo Hot, para cada trabalho existe um personagem interpretado por eles de maneira tragicômica. E é claro que tudo não vem por acaso. “A gente estuda e se preocupa muito com essa questão do audiovisual. Fui criado nesse mundo. Fiz teatro, sou marionetista desde moleque. Aprendi tudo com o meu avô. O Oreia também fez teatro. Tá tudo na mesma caixa: o rap, o teatro. No final, a gente só faz arte”, explica Hot. 

Agora, tudo que a dupla queria era celebrar o sucesso do novo disco com o público. Mas enquanto não pode retornar aos shows presenciais, já planeja os próximos passos. “Antes da pandemia, estávamos na melhor fase da vida, era show todo fim de semana. Íamos fazer uma turnê e viajar para fora. O palco não faz falta só financeiramente… Agora, estamos estudando colocar de pé nosso festival ano que vem aqui em BH, em torno da estrutura e das referências que gostamos. É uma forma até de nos fortalecer e nos pagar, porque nos festivais, em geral, o formato é sempre o mesmo”, avalia.

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