Inédita de Vander Lee será lançada nesta quarta, dia que o artista nasceu

As tentativas anteriores revelaram-se infrutíferas por um motivo mais que compreensível: a dor da ausência solapava o correr do processo. Só agora, passados quase cinco anos da morte precoce de Vander Lee (ocorrida em agosto de 2016), Regina Souza e os filhos do artista, junto à cantora e produtora Rossana Decelso, decidiram começar a compartilhar o baú de inéditas do cantor e compositor mineiro. O ponto de partida será o lançamento da música  "A Vida Não São Flores", possível graças a uma gravação deixada por ele, no formato voz e violão.  A produção musical ficou a cargo de Felipe Fantoni, que também assinou mixagem e masterização. Éneias Xavier, produtor dos dois últimos álbuns de Vander Lee, assina o arranjo de cordas, além de ter gravado piano elétrico e teclados. O time se completa com Fantoni no baixo e programações, Richard Neves no meletron e teclado e Helton Lima, na bateria.

Detalhe mais que importante: a música será disponibilizada nas plataformas de streaming no dia em que o artista nasceu, há 55 anos.  Regina Souza calcula que a música foi composta em 2000 ou 2001. "Ela é mais antiga, mas me lembrei de imediato quando a encontrei no acervo, ao começar a organizar HDs e fitas", diz ela, lembrando que o acervo de Lee ainda não está totalmente inventariado e catalogado. "Quando ele morreu, eu fiz uma  organização inicial, porque as coisas de trabalho estavam meio misturadas com as coisas de família e outros CDs. Havia os registros que estavam nos escritórios com os quais ele trabalhou e eu também guardava muita coisa - afinal, fomos casados durante 14 anos. Mas no computador dele e na mesinha de gravação que ele tinha, o material estava mais fácil de separar, e foi onde encontrei essa música, numa gravação mais profissional, com qualidade, não em celular, por exemplo".

A pista para a localização temporal foi dada por um caderno, no qual a letra estava escrita junta a outras composições que Lee preparou para Regina, que, à época, idealizava um show cênico-musical. "Ele acabou não saindo, mas gravei o CD, por isso sei dessa data", diz ela, que também garimpou outros achados, como uma gravação da música "Idos Janeiros", parceria de Lee e Flávio Venturini, com uma levada diferente da que acabou sendo registrada pelos dois. "Uma pegada mais samba, na verdade". 

Regina pontua que a letra de "A Vida Não São Flores" fala exatamente da vida como ela. "É como já diz o título, a vida não é só flores, mas dores também. Começa falando que todo mundo quer fazer sucesso, mas ninguém quer pagar o preço. Isso aí é muito particular dele, que ficava muito tempo na estrada, desde sempre falava que perdeu muita coisas dos meninos (seus três filhos), da Laura e do Lucas (frutos do casamento com a poeta Regina Machado), e mesmo da Clara (filha do casamento com Regina Souza), por estar tocando. Datas importantes que não pode participar, como as apresentações artísticas da Laura. Falava da solidão da estrada, dos aeroporto...", relembra. 

A  letra também versa sobre situações comezinhas, ao dizer, por exemplo, "todo mundo quer dormir juntinho/Mas ninguém quer acordar com o ronco". "E aí passa por essas coisas do cotidiano, que não têm poesia nenhuma, mas é muito bonitinho. Na verdade, sempre achei o Vander Lee uma pessoa muito filosófica, muito, muito. Não no sentido acadêmico, mas no de sua essência, que é refletir sobre o mundo, a vida. Atualmente eu curso filosofia, vejo como estava certa. Mesmo porque, em suas épocas, os filosófos não eram tidos como filósofos, eram pessoas comuns que faziam reflexões sobre o mundo. E  como o Vander Lee gostava muito de ler, eu acho que ele foi completando a essência do olhar dele sobre a vida e sobre o mundo com o conhecimento que foi adquirindo durante a vida. O curso universitário dele foi a vida".

"A Vida Não São Flores" sai acompanhada de um lyric vídeo, criação e animação de Guili Seara, a partir de manuscrito original da letra, fotos, colagens e imagens de arquivo. Vale dizer que outras homenagens a Vander Lee estão previstas para este ano: o álbum "Canta Vander Lee". da cantora e compositora Laura Catarina, interpretando canções do pai, com produção da própria artista, e um concerto da Orquestra Ouro Preto, interpretando a obra de Vander Lee, com direção do maestro Rodrigo Toffolo. Rossana Decelso acrescenta que está em curso a produção do disco "Tributo a Vander Lee",  que terá 12 canções do mineiro interpretadas por nomes Chico César, Maurício Tizumba, Paulinho Moska e Zeca Baleiro. "Já tem uma parte gravada, mas ainda falta muita coisa", conta Rossana. 

"Também vamos ter uma edição especial de uma caixa comemorando os 55 anos dele, que acho que vai ser um presente bacana para fãs", adiciona Regina Souza. No horizonte, mas não para esse ano, também está o lançamento de um livro de poesias de Vander Lee. "Certa vez, ele ainda vivo, quando estava organizando as letras dele, percebi que algumas, na verdade, eram poesias, e sugeri que publicasse o livro, inclusive arrisquei o título, 'Poesia a Granel', que era o nome de uma delas. Como ele mesmo aprovou, fico bem à vontade (de seguir tocando a iniciativa"). Outro desdobramento viável é a gravação de inéditas nas vozes de outros intérpretes. "Há muita coisa gravada em fitas nas quais a qualidade da voz dele não está boa, não sabemos se dá para recuperar. Mas, de qualquer modo, outros cantores registrando-as é uma ótima maneira de perpetuar o legado dele", entende Regina, que também cita um outro projeto, sobre o qual desculpa-se por não poder dar mais detalhes. 

 E por que, tudo agora? "A gente chegou à conclusão de que precisava esperar um tempo (para mexer o arquivo dele) - porque tudo era muito sofrido, para nós e para o público. Na verdade, até hoje os fãs sofrem, vemos isso nas redes. Eram muito apaixonados, porque o Vander Lee realmente tinha essa capacidade de tocar na alma de cada um. Um dia, nós, da família - e estou me incluindo em 'família' porque, apesar de estarmos separados na época (da morte dele), foram 14 anos junto, uma história construída - conversamos e vimos que tínhamos que esperar um pouco. E cinco anos era um tempo bom para as coisas darem uma assentada, para a ferida cicatrizar um pouco. Agora, há um pouco mais de distanciamento. O luto, só com o tempo para aplacar, não tem outro remédio", conclui

A vida não são flores

(Vander Lee)

Todo mundo quer fazer sucesso

Mas ninguém quer pagar o preço

Todo mundo quer o faz de conta

Mas quem vai pagar a conta

Todo mundo quer o impossível

Mas alguém tem que correr perigo

Todo mundo quer beber comigo

Mas quem vai me levantar quando eu cair

A vida não são flores baby

A vida são dores também

A vida não são flores baby

A vida são dores também

Pra toda delícia, há censura

Pra toda entrada, há saída

Pra toda razão, há loucura

Pra todo peso, há medida

Todo mundo quer dormir juntinho

Mas ninguém quer acordar com o ronco

Todo mundo quer comer o fruto

Mas ninguém quer subir no tronco

Todo mundo quer viver de amor

Mas ninguém quer o sacrifício

Todo mundo cobra (quer) o meu sorriso

Mas quem vai estar por perto quando a dor chegar

A vida não são flores baby

A vida são dores também

A vida não são só flores baby

São dores também

Pra toda delícia, há censura

Pra toda entrada, há saída

Pra toda razão, há loucura

Pra todo peso, há medida