Literatura

Itamar Vieira Júnior fala sobre o seu 'Torto Arado', o livro do ano

Vencedor dos principais prêmios literários em 2020 e também sucesso de público, livro é parte de um projeto maior, diz autor

Por Patrícia Cassese
Publicado em 27 de dezembro de 2020 | 20:08
 
 
 
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Em dado momento da entrevista, o geógrafo e escritor Itamar Vieira Junior diverte-se ao perceber como as palavras que saíram espontaneamente de sua boca não se ajustavam à realidade invocada pela pandemia do novo coronavírus. É que, ao rememorar, a pedido da reportagem, o momento em que recebeu a notícia de que seu primeiro romance publicado, “Torto Arado” (Ed. Todavia, 264 páginas, R$ 54,90), havia sido escolhido como o vencedor do Prêmio Jabuti, ele deu início à resposta da seguinte maneira: “Quando fui para a cerimônia...”. 

Em seguida, se lembrou que, na verdade, para acompanhar a revelação do resultado, apenas tinha ligado o computador. “É força de expressão, porque eu assisti em casa, virtualmente, como os outros (candidatos). Mas é que este foi um ano tão estranho...”, reconhece o soteropolitano, de 41 anos, descendente de negros, indígenas e portugueses e que, antes do Jabuti, já havia faturado o prêmio Leya (em Portugal) com a narrativa centrada nas irmãs Bibiana e Belonísia. 

Filhas de Salustiana e Zeca Chapéu Grande – esse, curador de jarê (religião de matriz africana) –, as meninas têm quase a mesma idade e se tornam ainda mais próximas após um terrível acidente com uma faca. Não por outro motivo, estabelecem uma cumplicidade que os outros dois irmãos, mais novos, não alcançam. A trama se situa nos anos 60, na Chapada Diamantina (BA), e tem como núcleo central uma fazenda onde as plantações acolhem interessados, mesmo que sem a contrapartida de um soldo. “Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato”, diz um trecho, ecoando uma realidade de um país que ainda mantém ativadas as sequelas da escravidão. 

No caso do Prêmio Jabuti, Itamar tinha a consciência de que estava concorrendo com nomes potentes da cena literária: Chico Buarque, Maria Valéria Rezende, Paulo Scott e Adriana Lisboa. “Portanto, desde o início, para mim já era uma honra (estar entre os finalistas), porque são escritores que admiro muito, muito experientes, com uma carreira muito sólida, todos. E que há muito tempo estão neste campo. Saber que fui vencedor foi uma honra muito grande. Um privilégio, o de estar ao lado deles e ainda trazer o troféu para ‘Torto Arado’”, confessa. 

Poucos dias após a entrevista ao Magazine, lá estava o nome de Itamar novamente sendo anunciado como o vencedor de outra láurea literária, desta vez o Prêmio Oceanos, concedido a autores de língua portuguesa. “A Visão das Plantas”, da angolana Djaimilia Pereira de Almeida, ficou em segundo lugar, e “Carta à Rainha Louca”, de Maria Valéria Rezende, em terceiro. Mais um incentivo, portanto, para ele seguir em frente no que diz ser um projeto de vida. “‘Torto Arado’ é parte de um projeto maior, que trata da relação do homem com a terra”, diz, propositadamente sem entrar em mais detalhes quanto aos demais desdobramentos possíveis. Por ora quarentenado, como toda a população que se pauta pela prudência, Itamar segue atendendo demandas por críticas literárias, escrevendo textos de ficção para antologias, debruçando-se sobre leituras várias e, claro, concedendo entrevistas como essa, para O TEMPO, sobre “Torto Arado” e seus prêmios. Confira, a seguir, outros tópicos do bate-papo. 

É verdade que “Torto Arado” teve como ponto de partida alguns escritos seus de quando contabilizava apenas 16 anos? Sim, a minha primeira tentativa de escrever o romance foi justamente na adolescência, quando li os livros da Geração de 30 e da Geração de 45, os grandes romances do Nordeste, que falam da relação do homem com a terra. Eu estava profundamente influenciado (por esses movimentos e seus signatários) e, como tinha uma máquina de datilografar, portátil, comecei a escrever. Cheguei a 80 páginas, só que, à época, não tinha maturidade para dar continuidade. Mas a ideia, a semente, ficou: a história de duas irmãs e da relação delas com o pai e com a terra. Ah, e o título também, que veio do poema “Marília Dirceu”, de Thomaz Antonio Gonzaga. Daí, segui outro caminho no mundo e, anos depois, já com mais experiência, até por trabalhar no campo, retomei a escrita, já numa segunda versão, essa definitiva, que os leitores conhecem. 

Fale sobre essa experiência prática... Você trabalha no Incra, não é? Sim, eu terminei cursando geografia, depois eu fui fazer pós-graduação e mestrado, o doutorado já foi no campo dos estudos étnicos, da antropologia. E em busca de trabalho, prestei alguns concursos. Minha ideia inicial era ser professor, mas tive a oportunidade de trabalhar no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Sou servidor concursado já há 15 anos. E aí eu comecei a viajar com mais frequência para o interior, para as regiões do campo. Primeiro no Maranhão, e depois, na Bahia. Mas eu nasci na cidade. Embora minha família paterna tenha origem no campo e as memórias da família de alguma forma sempre me alcançassem, não tinha essa vivência. Costumo dizer que meu trabalho é um privilégio, porque pude ter mais contato com esse universo. E fui ficando cada vez mais envolvido com a história das pessoas do campo, impressionado como estão tão esquecidas neste país, hoje. As pessoas mal se lembram delas, que se encontram numa situação de extrema vulnerabilidade. Mas, veja, eu não queria contar um drama. Não era minha função fazer uma denúncia, nada disso. Acho que o mais importante era falar dessa paixão pela terra, que, como tantas paixões, nem sempre pode ser explicada. Esse foi o principal mobilizador, narrar a vida de pessoas como eu, como você, que sonham, que erram, que fazem coisas das quais se arrependem. Mas que, nesse caso, estão em outro contexto. Personagens que não encontro com tanta frequência na literatura, que não têm mais essa centralidade na literatura escrita hoje. Porque quase sempre o que temos são autores homens escrevendo sobre homens, sobre a classe média branca, pelo menos na literatura dos últimos 20 anos. Não todos, claro, mas boa parte do que é publicado pelas grandes editoras, sim. No entanto, aos poucos a gente (referindo-se a novos autores que têm emergido no mercado editorial) tem rompido isso. Tem surgido muita coisa boa, que fala de outras personagens, de histórias, que não estavam tendo essa atenção da literatura. Acho que o campo, em particular, estava um tanto esquecido. 

Como foi para você, homem, dar protagonismo a personagens femininas, no caso de “Torto Arado”? Penso que a literatura é o terreno da liberdade. Acho que o mais interessante nela é essa capacidade que autor e leitor têm de se deslocar para outras vidas, outros lugares. Exercitar a alteridade, a empatia. Eu sempre parto do princípio de que, na literatura, a gente pode ser o outro enquanto está lendo ou escrevendo. Sempre me perguntam por que (escolho) personagens femininas. Primeiro, eu não escrevo só sobre mulheres e nem só sobre a perspectiva de mulheres. Em “Torto Arado” acontece isso, e também tenho contos a partir dessa perspectiva. Mas há outros com perspectivas diferentes. No caso de “Torto Arado”, como era uma história passada em uma comunidade quilombola do interior da Bahia, e eu, por ter viajado muito, me acostumei a encontrar muitas mulheres camponesas em posição de liderança e com protagonismo em suas comunidades, foi absolutamente natural que essa história fosse contada a partir da perspectiva de personagens femininas. Não concebia de outra forma. E também porque eu venho de uma família de mulheres fortes, na qual os homens sempre foram sombras pálidas. Assim, crescer no meio delas sempre atraiu meu olhar sobre como atuavam e superavam as dificuldades de um mundo patriarcal, com muitas questões que atingem as mulheres. 

Uma religião de matriz africana, o jarê, perpassa a narrativa. Queria que me falasse sobre suas pesquisas em torno dela. Eu me interessei pelo jarê ao conhecer a Chapada Diamantina com mais profundidade. Passava num lugar e em outro, e as pessoas sempre me falavam sobre o jarê. E um belo dia comecei a ir à casa onde se praticava. Como trabalhava com comunidades, sempre tentei entender a relação dessas pessoas com seus territórios, era muito importante adentrar esse universo, a cosmovisão de mundo deles. E aí vi que o jarê é um poderoso campo de solidariedade horizontal. Lá, as pessoas terminam criando um parentesco mesmo, ainda que não consanguíneo, mas a partir desse dom que está em torno do curador. Me envolvi principalmente por enxergar, ali, essa rede de solidariedade que o jarê representa. E quando decidi deslocar a minha história para a Chapada, o jarê foi surgindo naturalmente, como parte daquele mundo. Essa foi a minha intenção, e não relatar algo mágico. Ao contar a história a partir da perspectiva daquelas personagens, para elas, tudo que acontece ali é muito possível, muito real – mesmo que, para a gente, ler uma história narrada por uma encantada, como acontece na última parte (do livro), possa parecer algo mágico, ou próximo ao subgênero do realismo mágico na literatura. Mas a minha intenção era contar a vida a partir dos olhos dos outros. E, no caso, os outros eram esses personagens.

Como escritor, você segue alguma rotina? Eu procuro sim, ter rotina. Acho que para tudo que a gente quer fazer bem feito, precisa dar uma certa atenção, Para mim, isso (a dedicação) também significa muitos sacríficios, pois trabalho o dia inteiro, então, para escrever, são as horas vagas, os feriados, o final de semana, principalmente no horário noturno. E aí, quando eu estou escrevendo, é todo dia mesmo. Se por um acaso não consigo algum dia, eu tenho que compensar isso de outra forma. Esse rigor, eu aprendi não foi nem com a literatura, mas com os trabalhaos acadêmicos, teses, dissertação... Eu via muitos colegas com dificuldades para concluir, e vi que muitos careciam desse planejamento, dessa disciplina. Aprendi com meus orientadores, no próprio contexto acadêmico, essa disciplina, E eu levo a sério a literatura, então, quando estou imerso em um projeto, tento manter essa rotina, a de escrever todos os dias.

Como tem sido para você esta quarentena imposta pelo advento do novo coronavírus? A quarentena tem sido um período muito estranho. Bem, eu continuo nela, mas, no começo, era um medo muito grande, de tudo o que estava acontecendo. A gente não sabia exatamente o que era a doença, do que se tratava. Confesso que eu perdi muito tempo lendo notícias, porque a gente fica ansioso, querendo saber o que está acontecendo. E aí depois eu disse: 'Agora vou conseguir escrever, colocar os meus projetos em dia'. Porque eu tinha muitas viagens esse ano, muita coisa também para divulgar o livro. Mas aí migrou tudo para o virtual. Então, foi um ano de muito trabalho, muito mesmo. E sempre dividido entre a minha atividade profissional, de fato, e o meu trabalho literário. Foi um ano que eu nem senti passar. Eu estava conversando hoje (no dia da entrevista), com a (historiadora, escritora e biógrafa) Josélia Aguiar... Foi um ano tão estranho que agora que dei por mim que estamos já caminhando para o fim do ano. Porque foi tanto trabalho... por um lado foi bom, por ter me tirado atenção um pouco deste contexto tão terrível que temos atravessado, de pandemia, o Brasil passar por um momento tão duro mesmo, um momento político perverso... Acho que (o trabalho) tirou um pouco o foco disso, e eu canalizei a energia para as trocas com os leitores, com outros autores. Penso que vou lembrar desse ano assim, além de tudo o que aconteceu, um ano de muito trabalho

O que mais te decepcionou neste período? Primeiro, perceber que estamos num beco quase sem saída. Eu falo do país. Politicamente, tudo vai muito mal, né? E eu me sinto refém desse ódio, dessa raiva, que parece que os governnantes têm, que estão,destilando neste momento, principalmente na esfera federal. É uma situação muito perturbadora para mim, e essa sensação de impotência... Inclusive, foi um ano que a gente não pode ir à ruas, como toda boa democracia demanda. Foi necessário nos resguardar, nos proteger, isso dificultou um pouco as coisas. Então, foi um ano muito estranho.

Por outro lado, falando das coisas boas, eu vejo que temos uma enorme capacidade de nos reinventarmos. As tecnologias permitiram que a gente mantivesse contato, mantivesse um mínimo de atividades acontecendo. Muita coisa aconteceu, conseguimos tocar a vida apesar de tudo, apesar de todas as restrições, apesar de todos protocolos necessários para que a gente conseguisse atravessar esse momento, e conseguimos em parte. Porque se a gente for olhar o contingente de mortos, é um absurdo. Se olharmos em outros países da Ásia, onde a pandemia foi controlada, estamos em uma situação desvantajosíssima. Enfim, mas eu estava pensando aqui, porque eu tenho que escrever um texto sobre isso, e estava refletindo sobre a tecnologia, pensando nas redes sociais como janelas. Foram janelas para a gente manter a vida, para a gente encontrar as pessoas, conversar. Eu especialmente, por causa do livro, recebi muito retorno de leitores, muitas mensagens. Foi muito rico, nesse sentido, de ver essa capacidade de criarmos laços. Precisamos disso. E assim, mesmo confinados em casa, conseguimos manter o mínimo de vida social. Mesmo que virtual, mas a gente manteve; acho que essa é a coisa positiva que vamos levar esse ano.

O que você fez - ou tem feito - neste período? Eu sempre leio muito, então, tenho lido muito. A visibilidade de "Torto Arado" terminou demandado que muitas pessoas me pedissem leituras, leituras críticas, para jornais e revistas. Então, no segundo semestre, eu quase não escolhi o que ler (risos). Sempre surgia uma demanda. O bom é que eram ótimos livros! Então, terminei lendo e escrevendo muito sobre eles, foi um ano muito produtivo nesse sentido. Eu também recebi muitos convites para participar de antologias, Assim, além de escrever críticas e textos de não ficção, escrevi também muita ficção para antologias. Ou seja, foi um ano bom também por isso, de trabalho e de poder continuar escrevendo, continuar fazendo literatura.

Em que novos projetos você está trabalhando? Ano que vem, a Todavia, mesma editora que lançou "Torto Arado", vai publicar uma coletânea de contos meus. É uma reedição, na verdade, ou melhor, uma edição ampliada, com novos contos, do meu livro anterior. Sendo assim, no segundo semestre, a gente já tem isso programado. E eu costumo dizer que "Torto Arado" é parte de um projeto maior de vida.  Nesse sentido, já tenho algo além engatilhado -  já comecei na  verdade, mas não estou trabalhando no ritmo que eu gostaria, por conta de tudo que "Torto Arado" tem exigido de mim, neste momento de divulgação e de tantas coisas, eventos virtuais. Não consegui escrever como gostaria de ter escrito, de ter feito, nesse ano. Mas acredito que nos próximos meses consiga retomar esse projeto, que vai além de "Torto Arado" ao falar da relação do homem com a terra. Não posso contar mais porque eu mesmo preciso saber mais da história também escrevendo. Mas, enfim, o o próximo romance é sobre isso (essa temática).

 

 

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