Literatura

Livro mostra Nelson Rodrigues pelo buraco da fechadura

'Desditas Cariocas' reúne 25 contos inéditos inspirados no universo do autor, que não teve pudor em explorar a condição humana como ela é

Por Bruno Mateus
Publicado em 02 de março de 2022 | 04:30
 
 
 
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Quando Rodrigo Brand e Sacha Rodrigues tiveram a ideia de adaptar os textos de três peças de Brand para um livro de contos inspirado pelo universo de Nelson Rodrigues (1912-1980), o nome “Tragédias Cariocas” surgiu como perfeita homenagem ao estilo “tapa na cara” do inimitável escritor, jornalista e dramaturgo. Entretanto, eles notaram que já existia um livro com o mesmo título. Brand, que é ator, escritor, roteirista e diretor, estava resoluto.

Criou-se um impasse, logo resolvido com um par de cliques. “Fiz a coisa mais básica nos dias de hoje: pesquisei no Google. Quando li ‘desditas’, que me levou a ‘infortúnio’ – e acho que a maioria dos contos tem mais infortúnios –, vi que funcionou. Sugeri ao Rodrigo e à editora, e eles toparam imediatamente”, conta Sacha Rodrigues. Sacha é produtor, ator, fotógrafo, filho do cineasta Joffre Rodrigues e neto de Nelson.  

Recém-lançado, “Desditas Cariocas” (Editora Ubook) traz 25 episódios baseados nos textos dos espetáculos “Se Eu Fosse Nelson” – que ganhou os palcos dos teatros do Rio – “Ainda Nelson” e “Para Sempre Nelson”, cujas montagens foram adiadas pela pandemia. Justamente quando chegou o isolamento, Brand começou a transformar as peças em textos literários. Se não podiam encená-los, nada os impedia de levá-los para as páginas de um livro. “Meninos, caprichem”, é o que Sacha imagina que o avô Nelson Rodrigues teria dito ao saber da empreitada. “Depois de ver o livro pronto, ele ia babar, curtir, fazer matéria divulgando”, completa.

O amante, o chato, o morto, o idiota e o político; o adultério, o sexo, o futebol, a sátira, a inveja e a crítica inquieta e eloquente dos costumes. Entre temas e personagens, o universo rodrigueano está impregnado em “Desditas Cariocas”.

“Gregório era o crítico do jornal local, um rapaz sem talento algum, que detinha o pequeno poder de uma coluna diária e de uma capa do caderno de cultura. Sobrinho do editor-chefe, estava livre das amarras e condições impostas aos outros no que se referia à produção de um conteúdo de qualidade”. Estas são as primeiras linhas do delicioso e rodrigueaníssimo “Inveja”.  

No entanto, a escrita de Brand não é uma cópia de Nelson Rodrigues – é certo, porém, que ele é o menino que olha, ávido e curioso, a obra de Nelson pelo buraco da fechadura. Com humor inabalável e fina ironia, Rodrigo Brand trabalha muito bem com o que é influência e o que é a própria criação. Também consegue dar aos infortúnios – as desditas, aliás, não são desgraças que nos enchem o peito de angústia; pelo contrário, fazem com que nos sintamos mais vivos, afinal, entre o trágico e a comédia, entre o absurdo e o ordinário, há a vida e todos nós – o caráter absolutamente desconcertante e ambíguo: é ficção das boas, só pode estar nos livros, mas também é real, sim, por mais que tentem jogar para debaixo do tapete do pudor.  

“Rodrigo não bebeu da água de Nelson, ele foi na mesma fonte. O texto dele é autoral, são contos inéditos. Você se lembra do meu avô, mas tem certeza de que é o Rodrigo”, pontua Sacha Rodrigues.  

“Obra atemporal e perpétua” 

Rodrigo Brand vê “Desditas Cariocas” como uma homenagem a um autor que deu a cara a tapa e inventou um estilo que acabou influenciando o teatro, o cinema e a crônica. O escritor diz que o fato de a obra de Nelson Rodrigues ser extremamente original, inovadora, revolucionária e competente é o que a torna atemporal e perpétua: “Estou seguindo um caminho já trilhado. Nelson é o primeiro explorador. Chegar com um facão em uma mata, se enveredar por um caminho que não existia, sofrer com os percalços e chegar ao outro lado é a maior dificuldade. Ele conseguiu. Nelson foi um mestre em explorar sem medo e sem vergonha o cerne da condição humana, por isso ele até hoje é um ícone, e sua obra é perene”, avalia Brand.  

Para o escritor, é saudável que novos artistas retrilhem o caminho deixado por Nelson Rodrigues porque é importante aprender com os grandes mestres. “Olha a genialidade do trabalho dele. É uma dramaturgia incrível, é imensamente saboroso ler Nelson Rodrigues”, observa o ator. “Vejo o Rodrigo entrando na trilha com o facão dele, encontrando os atalhos dele dentro da trilha rodrigueana”, opina Sacha Rodrigues.  

Com “Desditas Cariocas” publicado, Rodrigo Brand diz que seria uma alegria enorme que “Ainda Nelson” e “Para Sempre Nelson” fossem encenadas até o ano que vem. Quando Brand resolveu sair da dramaturgia para a literatura, percebeu que poderia esmiuçar mais as histórias e os detalhes que nos espetáculos. Ao voltar para os palcos, o diretor sente que o texto vai ganhar outras possibilidades, e ele terá mais propriedade dos personagens e dos diálogos.  

Há mais de 20 anos, Sacha Rodrigues trabalha com o legado do avô. Exposições idealizadas por ele já desembarcaram em Londres e Dublin. Em 2019, Sacha apresentou Nelson Rodrigues para alunos de escolas estaduais do Rio. “Foi uma maravilha”, conta. O produtor afirma que o livro “tem uma importância total e absoluta” ao cumprir a missão de não retirar Nelson da ordem do dia e reafirmar sua atualidade. “Nelson é tão importante para o Brasil quanto Shakespeare é para a Inglaterra. Eles estão na mesma prateleira”, acredita. 

Um belo dia, disseram para Joffre Rodrigues, com autoridade, que seu pai era o Shakespeare brasileiro. Joffre encheu o peito e respondeu: “Shakespeare é que é o Nelson Rodrigues inglês”. Quem conta a divertida passagem é Sacha, para encerrar a entrevista. “Concordo”, diz Rodrigo Brand. “Com uma frase papai rebateu todo o complexo de vira-lata”, conclui Sacha Rodrigues. 

Serviço 

“Desditas Cariocas” (Editora Ubook, 227 págs., R$ 49,90 e R$ 24,90 para assinantes) também ganhou versões e-book e audiobook, esta exclusiva para assinantes da Ubook e narrada por Sacha Rodrigues.

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