Luís Miranda vem dividindo sua trajetória profissional entre atuações marcantes em drama e comédia. No primeiro escaninho, atuou em filmes como “Carandiru” e “Bicho de Sete Cabeças”, para citar alguns exemplos. No segundo, deu vida a personagens que ficaram marcados na memória do espectador, seja ele o de teatro ou o da televisão – como esquecer, por exemplo, o Moreno, do saudoso “Sob Nova Direção”? Mas é na pele de Madame Sheila, que encarnou na bem-sucedida experiência do “Terça Insana”, e, mais tarde, no “5x Comédia”, que ele volta à cena nesta quinta-feira, para tentar dar um pouco mais de conforto à alma dos que estão quarentenados em casa. Mas que fique claro. Se o riso é intrínseco ao espírito do espetáculo, que será transmitido às 21h, por meio do projeto Teatro Unimed em Casa, é bom frisar que, nesse caso, ele está atavicamente atrelado à proposta de provocar reflexão. E muita. 

Em entrevista virtual coletiva realizada na última terça-feira, Luís Miranda contou que “Madame Sheila”, espetáculo dirigido por Monique Gardenberg e com cenografia de Daniela Thomas, iria estrear em setembro deste ano – não fosse, claro, a pandemia. A montagem estaria no estaleiro não fosse o convite para integrar o projeto com uma releitura que tivesse justamente como mote os tempos de distanciamento social. “A gente vive em uma sociedade dividida, temos a classe rica, a mediana e a extremamente pobre, então, torna-se necessário falar sobre algumas questões, e essa montagem surge para jogar luz nestes comportamentos durante a pandemia, considerando que uma das classes e grupos mais atingidos foi a que não podia ficar em casa (por ter que garantir o ganha-pão). Aqui é o que acontece quando há uma madame confinada em seu closet, tendo, pela primeira vez, contato (efetivo) com os seus empregados domésticos, que (até então) eram tratados quase como invisíveis, como tantas pessoas que a gente faz de conta que não existem”, explica. 

Para Miranda, o espetáculo tem um não sei o quê do espírito da escritora estadunidense Dorothy Parker (1893 - 1967), conhecida por seu olhar ácido e perscrutador sobre o american way of life. “(Assemelha-se muito) na maneira de abordar muito acidamente a sociedade norte-americana. Uma de suas frases famosas era: ‘Dizem que dinheiro não compra saúde, mas eu ficaria satisfeita com uma cadeira de rodas cravejada de diamantes’. Eu acho que a maneira que a peça encontrou para falar dessa sociedade individualista dos dias atuais por meio da Sheila é parecida”.  

O ator relata que a montagem fez uma opção – “até mesmo por conta da polarização (que o Brasil vive já há alguns anos)” – de não fazer citações a políticos ou a pessoas reais. “Mas estão ali, implícitos, alguns comportamentos sociais que vocês mesmos, repórteres, já relataram (em seus respectivos veículos). Talvez o mais específico seja um comentário de uma primeira-dama a respeito dos mendigos, mas isso foi visto por todo mundo, não é surpresa”, entende ele, referindo-se à primeira-dama de São Paulo, Bia Doria, que declarou que moradores em situação de rua são “preguiçosos”. 

“Mas a gente utiliza a Madame Sheila para falar implicitamente de uma série de outras questões, como o excesso de plásticas das celebridades, colocações mesquinhas... É como se tudo isso estivesse sob uma lente de aumento e dito de uma maneira ironizada, mas sempre com classe e requinte. A gente não faz piada de mau gosto. É aquela maneira de se ouvir (verdades) de maneira sutil, mas não tem dedo na ferida. Não nos interessava, neste momento, palanque. A gente não chuta cachorro”, sinaliza ele, que não esconde suas indignações por tempos em que uma briga no Leblon vira um dos assuntos mais falados nas rodas de conversa. “A gente vive ainda uma sociedade com valores muito questionáveis. Tem coisas mais importantes (que a citada polêmica). É uma falta de respeito tão grande! Mas as pessoas gostam de fofoca, de briga”, lamenta. 

Tempos de pandemia. Luís Miranda conta que, antes do advento da pandemia, estava em um processo "muito interessante". "A gente estava fazendo muito sucesso em São Paulo com 'O Mistério de Irma Vap', ganhei o premio Shell... Enfim, estava muito feliz. Quando veio a pandemia, fui me resguardar em minha casa em Salvador. Fiquei assustado. E optei por não ser um disparador, como algumas pessoas quiseram fazer, de lives. Participei de algumas,  mas, e é a minha opinião particular, achei que naquele momento a gente não tinha jeito de se exprimir sobre o desconhecido. Via a alta sociedade jogando filho dos outros pela janela e gente abrindo lives para falar sobre isso, gente que nunca teve empatia racial. Houve o caso do George Floyd... Nesse espaço de tempo, observei todos esses comportamentos. O desejo de algumas pessoas de voltar para os shoppings, a relação abusiva de patrões e empregados, o pobre que não tem direito de ir à praia, Todas essas coisas foram observadas e vividas, e com um governo confuso, uma sociedade dividida, e 140 mil mortos para os quais todo mundo lava as mãos", brada, numa fala que exala potência.

Miranda diz reconhecer que está numa situação privilegiada, "Tenho casa própria, consegui pagar minhas contas, não passei fome. Mesmo porque, trabalho desde os 17 anos. Mas teve gente que morreu envenenada por comida dada por gente maldosa. Então, foi um momento de extrema reflexão, e isso tudo também me fez trazer a Sheila", 

Sobre o pós-pandemia, ele pontua que não é uma pessoa pessimista, mas afirma não acredita em grandes mudanças. "Não acredito nisso. Acho que há uma possibilidade de transformação do indivíduo pós-pandemia em alguns aspectos, mas o desejo de ver o outro realmente não existe. Quem está mobilizado (em ajudar o outro) são as pessoas que perderam um ente querido, um amigo, um parente, e que sabem que a doença não é brincadeira. Já o que as pessoas que são protegidas querem mais é que os serviçais voltem para as lojas, porque 'precisam' comprar. Precisam ter o supermercado (funcionando) para comprar caviar. Essas pessoas não têm mais jeito, estão contaminadas com o dinheiro que juntaram. Quando a gente escuta determinados posicionamentos que vão de encontro à empatia, a gente vê que a pandemia não transformou, de verdade (algumas pessoas). Mas não acho que a peça tenha um recado pessimista, e, sim, realista, dando a possibilidade de reflexão".

Talento multifacetado. Luís Miranda assume um tom de prudência para falar sobre o já citado Prêmio Shell, por "O Mistério de Irma Vap" (sob a direção de  Jorge Farjalla, e com outros atores, como Mateus Solano e Thomas Marcondes no elenco), arrebanhado ano passado, na 32ª edição do certame. "Pode parecer falsa modéstia, mas a história do prêmio nunca foi uma prioridade (neste momento). Tenho a impressão que foi (dado a ele) mais pelo repertório de carreira que pelo personagem. Não é perfil do prêmio agraciar atores de uma comédia, mas, por outro lado, acho importante que a comédia tenha esse reconhecimento".

Por outro lado, ele marca território quanto ao seu livre trânsito por todos os gêneros. "As pessoas que me conhecem sabem que eu ficaria extremamente frustrado em ser um ator de um personagem só, de um papel só. A Sheila nasce assim como Lima Barreto (no filme "Lima Barreto, Ao Terceiro Dia", de Luiz Antônio Pilar), assim com 'O Riso de Ariano' (série inspirada em Ariano Suassuna), para a qual pedi à casa (à Rede Globo) afastamento do 'Zorra' ('Zorra Total')".

Aliás, ao falar desses tempos de mudança, ele volta à Madame Sheila. "A Monique (Gardenberg) me pediu para deixar de usar óculos. Falou: 'Não, quero ver seus olhos'. Ao mesmo tempo, ela falou: 'A Madame Sheila não vai ficar bêbada o tempo inteiro'. Foi tirando os artifícios, coerente ao meu momento. Aos 50 anos, tenho pouco tolerância para questões superficiais".

Ele encerra lembrando, ainda, que mostrar o espetáculo nesta nova leitura, e online, é, também, um ato de resistência e de marcar território.  "Estamos aqui, despertos, produzindo coisas para que, quando tudo isso passar, a gente possa se reencontrar no nosso espaço, no nosso ambiente". 

Em tempo:  Segundo informações publicadas no jornal “O Globo”, “5x Comédia”, peça que faz sucesso desde os anos 90 com múltiplos elencos, vai virar série na Amazon. A direção será de Monique Gardenberg. O elenco ainda estaria sendo escalado. 

“Madame Sheila”, com Luís Miranda 

Estreia: Nesta quinta-feira, 1º de outubro de 2020, às 21h, no site do Teatro Unimed (www.teatrounimed.com.br).
Horários: às quintas-feiras, sempre às 21h. A cada semana, um ato de até oito minutos de duração. O último ato será apresentado no dia 19 de novembro de 2020. Os oito atos da peça poderão ser vistos no site do Teatro Unimed até o dia 26 de novembro de 2020.
Classificação: Livre
Ingressos: gratuito
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