"É uma doença. Ninguém mais pensa ou sente ou se importa; ninguém se empolga ou acredita em nada, exceto na porra da sua mediocridade... Tão confortável."
O trecho acima concentra em 26 palavras todo a carga dramática que o romance "Foi Apenas um Sonho" carrega em suas 312 páginas. Mais do que uma descrição exata, o destaque resume o que o escritor Richard Yates pretendeu retratar em 1961, ano de lançamento do livro, que chega pela primeira vez ao Brasil na edição da Objetiva/Alfaguara.
Ainda que estimulado pelo filme homônimo dirigido por Sam Mendes (em cartaz nos cinemas), o lançamento tem o peso de um romance de F. Scott Fitzgerald, também afeito a destrinchar a classe média norte-americana - ou seu "way of life". Não raro, o livro de Yates é comparado a "O Grande Gatsby", obra máxima de Fitzgerald.
Nos anos 50, um casal deixa Nova York para viver no subúrbio, na rua da Revolução, o título original do livro ("Revolutionary Road"). Era o projeto norte-americano de convivência, que faliu há pelo menos duas décadas e que no Brasil ainda se vende como a melhor coisa do mundo - principalmente em grandes centros urbanos.
Frank e April Wheeler compram a ideia e se mudam para um condomínio com ares de cidade de interior, bem descritos nos modos dos vizinhos e na arquitetura das casas.
Em determinado momento, o tédio e insatisfação atingem o casal, que se lança ao sonho de viver em Paris. Um terceiro filho não planejado irá expor as feridas nunca cicatrizadas e outras que nem sabia que existiam.
Todo o amargor e toda uma frustração represada irão explodir. Se antes se sentiam especiais e lutavam para serem especiais, depois se avaliam como fracassados (April) ou iludidos (Frank). O resultado é cruel.
O filme de Sam Mendes é fiel ao texto de Yates e consegue condensar em duas horas o que de mais forte o romance carrega. Muita coisa fica de fora, como a exploração de personagens periféricos, fundamentais para perfilar aquele contexto. Yates sustenta a crise do casal com essas histórias, como a de Shep, que serviu o Exército com Frank e agora, além de vizinho, casado e com filhos, nutre paixão por April. Ou a de Helen Givings, corretora que vendeu a casa aos Wheeler e também mora no subúrbio. Yates dá a intensidade necessária para transportar o retrato cruel, triste e desolador de uma época.
Os diálogos criados por Yates, próximos aos de uma dramaturgia, levam o leitor a se envolver com a crise. Talvez porque o autor tenha investigado a fundo esse ser que se pretende especial e se revela medíocre, típico do sonho dos EUA dos anos 50, que os 60 destruíram, e do desejo brasileiro de ser grande dos anos 70, que ainda ilude uma elite nacional. O romance, mais que um retrato da família norte-americana de meados do século, é um instantâneo sem filtro do que somos.
Redução. O livro reproduz na capa o cartaz do filme, praxe para "eventos" como esse - leia o livro, veja o filme, ouça a trilha. O romance de Yates ganhou um título infeliz, provavelmente gerado na mesa de criação das distribuidoras do filme e aceito pela editora.
O título "Foi Apenas um Sonho" reduz o alcance do livro à viagem a Paris. O sonho não era Paris, o sonho não era a rua da Revolução. Então, dizer que foi apenas um sonho é ignorar que o leitor/espectador seja capaz de entender e captar a profundidade do tema.
Agenda
o que. "Foi Apenas um Sonho", de Richard Yates. Tradução de José Roberto OShea. Objetiva/Alfaguara, 312 págs, R$ 39,90
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A desilusão de um modo de vida
Lançado pela primeira vez no Brasil, impactante livro de Richard Yates inspirou o filme "Foi Apenas um Sonho"
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