FIQ 2018

A diversidade das histórias em quadrinhos femininas

Exposição na Casa Fiat e a ampliação no número de mulheres entre os participantes do festival confirmam a força das quadrinistas

Por Gustavo Rocha
Publicado em 27 de maio de 2018 | 03:00
 
 
 
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Da prosódia coloquial mineira vem o termo “arredar”, que significa abrir espaço, ir para o lado de modo a abrir o caminho para alguém passar. Arredar, entretanto, não está nos planos de 12 quadrinistas mulheres de Belo Horizonte, presentes na exposição “Inarredavéis! Mulheres nos Quadrinhos”, que integra a programação do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), que começa na próxima quarta, dia 30, na Serraria Souza Pinto e em outros três espaços da cidade. 

“Para dizer, em uma boa linguagem belo-horizontina, não vamos arredar para o lado, nós viemos para ficar, esse espaço foi conquistado e agora é definitivo. A ideia da exposição surgiu como um marco, em um momento dos quadrinhos em que as mulheres conseguiram conquistar um espaço bem legal. Não digo que conquistamos tudo, ainda temos um longo caminho, mas hoje temos muitos motivos para nos sentirmos orgulhosas”, comenta Carol Rossetti, quadrinista e uma da curadoras do FIQ e da exposição “Inarredavéis!”.

Para além da exposição – que fica na Casa Fiat até dia 29 de julho –, o impacto da pungente produção feminina pode ser vista também entre os convidados do FIQ. Num total de 42, entre brasileiros e estrangeiros, 21 são mulheres. Ou seja, metade dos participantes são quadrinistas. “Queremos trazer toda a potencialidade dos quadrinhos enquanto mídia, narrativa e linguagem e, para a gente ter esse potencial, não podemos ter as mesmas pessoas trazendo as mesmas histórias. Precisamos da diversidade. Entre os convidados, conseguimos essa proporção de meio a meio. Temos vários convidados negros, com deficiências, trans, LBTQI. Essa é uma preocupação: ter muitas histórias, muitas narrativas e mostrar a potencialidade do quadrinho. Não tem jeito de fazer isso sem abordar representatividade”, pontua a curadora.

Carol ficou conhecida pela série “Mulheres”, na qual mostrava uma diversidade de narrativas e possibilidades de trajetórias para as mulheres diferentes do padrão “encontrar um marido, ter filhos e ser dona de casa”. “Todas as oportunidades na minha carreira como quadrinista vieram por conta desse projeto. Foi um projeto abertamente ativista nesse sentido”, garante. 

A “pegada” ativista de “Mulheres” ainda estaria presente no trabalho seguinte, “Cores”, quando a quadrinista tentava levantar temáticas e discussões para as crianças, já que, segundo ela, parte da luta feminista se centrava em “desconstruir preconceitos e estigmas”, mas que era preciso educar os mais jovens na busca da construção de novos lugares e discursos.

Quadrinhos claramente ativistas com temáticas feministas são apenas uma das possibilidades para os trabalhos de muitas autoras, que entendem e destacam a necessidade de superação do discurso da opressão. “Temos quadrinistas com trabalhos explicitamente feministas, que estão claramente tratando esses assuntos. Outras que não estão tratando disso, mas que não deixam de colocar a questão da representatividade dentro do trabalho. Temos narrativas: mulheres com desenhos fofos, mulheres com desenhos nada fofos. Mulheres que fazem quadrinhos de terror, mulheres que fazem quadrinhos do cotidiano, da vivência enquanto mulher, ou quadrinhos sobre os mais diversos temas. Tiras políticas, quadrinhos de comédias...”, dimensiona Carol. 

Para Daniel Wernëck, outro curador do FIQ, a distinção entre quadrinhos “de meninas” e “de meninos” foi reforçada a partir da década de 70, com a popularização das HQs de super-heróis. “Nos quadrinhos antigos, entre as décadas de 30 e 40, não havia essa distinção. Todo mundo lia os mesmos quadrinhos”, pondera ele, que também é professor da Escola de Belas Artes da UFMG, onde coordena o grupo de pesquisas em narrativas gráficas e o núcleo de produção Crânio Quadrinhos.

“O ideal é falar que existe uma produção, e não fazer essa divisão: quadrinhos de mulher ou quadrinhos de homens. Mas é importante destacar que, pelo fato de o mercado ainda ser machista, existia um problema da visibilidade das mulheres nos quadrinhos”, comenta Ana Cardoso, outra quadrinista presente em “Inarredavéis”. “Por eu ser uma mulher afrodescendente, tento abordar nas minhas produções atuais essa questão, mas não apenas o racismo e coisas assim, mas tratando essas pessoas como protagonistas. Estamos cansados de histórias de negros contando sobre racismo. Não precisamos usar as figuras das minorias apenas para tratar os assuntos das minorias”, completa. 

Para Cris Eiko, artista paulistana convidada para criar a identidade visual do festival, o rótulo “feminino” ou “feminista” pode guiar o olhar do público para lugares mais excludentes, reduzindo a produção das mulheres às temáticas engajadas. “As autoras podem contar histórias com ou sem temática ‘feminina’. Então, assim como pode ter HQs sobre maternidade, masturbação feminina e outros temas, feitas por mulheres, também pode ter sci-fi, guerra, terror, o que as mulheres quiserem fazer, que não será menos interessante”, diz. 

Powerpaola é um dos destaques do evento

Um dos destaques entre os convidados internacionais do FIQ 2018, Powerpaola lembra que uma geração anterior precisou percorrer os caminhos da militância feminina mais direta para que artistas, como ela, pudessem escolher livremente os temas de seus interesses. “Talvez antes fosse mais claro isto dos assuntos femininos. Agora tudo está mudando, e existem garotos que exploram sua feminilidade e garotas que fazem desenhos mais masculinos”, analisa a cartunista e desenhista, nascida no Equador em 1977 e criada na Colômbia.

Para Powerpaola (na verdade, Paola Andrea Gaviria), os quadrinhos são uma extensão da sua vida. “Cada projeto é um experimento com desenho, diálogos, o tempo, o espaço e o texto. Cada vez que me ocorre um projeto de longo prazo, me imponho limites. Por exemplo, não é a mesma coisa desenhar a partir da memória ou algo natural que eu veja. Para mim, é mais fácil falar do passado porque de alguma maneira encontrei um princípio e um fim”, diz a artista, que adotou o apelido Powerpaola quando presenciou uma traição de seu namorado e um estranho na rua ficou lhe falando: “power, power”.

Outras narrativas feministas

Em um país tão marcado pelas desigualdades, é natural esperar desequilíbrios também nas expressões artísticas. Se hoje as mulheres entendem que já superaram a pecha de “quadrinhos de mulher” para abordar as temáticas mais variadas de seus interesses, o mesmo não pode ser dito sobre outros grupos sociais historicamente oprimidos, como é o caso das transexuais.

A trans Sophie Silva, 19, que apresenta seu trabalho na exposição “Inarredavéis”, prefere não trazer o tom autobiográfico, como as dificuldades e os preconceitos de sua transição para o gênero feminino. “Considero importante falar a respeito, mas é uma temática pesada. Ainda existe muito preconceito, e não gostaria de lidar com ele também no meu ambiente criativo”, pontua.

Identidade. Entretanto, para a quadrinista trans Luíza Lemos, dona da série “Transistorizada”, que não estará no FIQ, retratar seu cotidiano nos quadrinhos foi o caminho para entender melhor seu próprio processo de construção de identidade. “Meu quadrinho é bem autobiográfico, mas com um toque ficcional de humor”, define.

Ela conta que, durante a transição, sentiu uma grande disparidade entre o material que produzia e quem tinha assumido ser. “Tive que fingir em todos os aspectos uma masculinidade que não condizia com meu eu interior. Entrei num período de seca criativa, fiquei meio deprimida e, assistindo um programa sobre sexualidade, ouvi um dos apresentadores dizer que antes de se assumir vivia triste dentro do armário. Imediatamente, eu tive um insight: nada me representa mais do que a minha própria história”, afirma Luíza, professora da Escola Livre de Artes da Casa da Cultura de Paraty e que integra o coletivo Korja dos Quadrinhos.

Quadrinista homenageada 

Seguindo a linha de valorização das quadrinistas, a homenageada desta edição do FIQ é Érica Awano, profissional de destaque, especialmente com projeção internacional. A quadrinista terá uma exposição temática com sua trajetória e participará de um bate-papo com mediação de Germana Viana e Carol Rossetti. “Na verdade, quando o Afonso (Andrade, coordenador do FIQ) me falou da homenagem, eu tentei convencê-lo a arranjar outra pessoa. Nessas horas é que a gente vê como nós, mulheres, somos condicionadas aos papéis”, reflete ela. 

Érica começou sua carreira em parceria com o roteirista Marcelo Cassaro e juntos fizeram as séries “Street Fighter Zero 3”, “Holy Avenger” e “DBride”. Posteriormente, ela foi convidada para desenhar títulos estrangeiros, sobretudo nos EUA. “Warcraft Legends” e “The Complete Alice in Wonderland” são os principais. “O mercado nacional é pequeno para quadrinhos. Publicações, de um modo geral, não estão entre as prioridades dos brasileiros. As editoras não investem em quadrinhos nacionais. Ou pagam muito pouco, ou fazem concurso para conseguir quadrinistas, pagando muito pouco. O que acontece é que, depois de alguns anos, os quadrinistas cansam do dinheiro acanhado e param de produzir. Dessa forma, não existe um investimento no mercado”, reclama Érica. 

Entretanto, como em outras áreas artísticas, os caminhos paralelos surgem como alternativa para seguir produzindo e lançar as HQs. “A Internet ajudou muito nesse sentido. As informações circulam mais, não estamos sozinhos na praça, tentando chamar atenção para nossos trabalhos”, sinaliza a quadrinista.

Quadrinista de sucesso em um mercado marcante masculino, Érica também crê na capacidade das narrativas desenhadas por mulheres extrapolarem a alçada do ativismo. “Não acho que as temáticas femininas somente atraem os olhares das mulheres. O que muda é que as leitoras não querem uma história centrada apenas nos modelos masculinos de heróis. O interesse feminino é por histórias de pessoas. Elas querem temáticas universais tratadas de formas diferentes, uma história que não precise de forçar a barra e dar lições de moral”, analisa Érica.

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