“Bingo: O Rei das Manhãs” é um filme de bastidores. É um longa em que a câmera do diretor de fotografia Lula Carvalho (“Tropa de Elite”) sai do palco com Bingo (Vladimir Brichta) e o acompanha pelos corredores da TV até o camarim, onde ele bebe uma dose de uísque e cheira uma carreira de pó antes de voltar para o set e ridicularizar uma criança em cadeia nacional, traumatizando-a para sempre.

É uma abordagem que busca mostrar “como se faz a linguiça”, e deixa claro que a TV é uma personagem não só do filme, mas da cultura brasileira. “Sempre que se faz um filme, a primeira preocupação é esconder cabos, refletor. E a gente não fez isso. A gente empurrava refletor para o quadro e botava mais cabo quando não tinha”, reconhece o diretor Daniel Rezende.

A câmera disseca esse ambiente como um organismo porque, na visão do cineasta, ele é uma metáfora do próprio protagonista – abordagem similar ao recente “Steve Jobs”, de Danny Boyle. Os dois são sintomas de uma mesma doença. “Apontar a câmera para o programa é legal, mas para o outro lado é muito mais interessante”, provoca Rezende.

A subversão dessa câmera que está sempre girando para revelar o outro lado – de um argumento, de um set, uma locação – é a mesma do palhaço que debocha e vira do avesso as convenções de sua sociedade. E esse deboche ágil, divertido, ácido, sexy, provocador – embalado pelo bom ritmo de um filme dirigido por um montador e pela ótima trilha, tensa e pulsante, de Beto Villares, que mergulham o espectador na egotrip lisérgica do protagonista – é a melhor forma de fazer o público se dar conta de como vários aspectos ressaltados ali falam muito do mundo de hoje.

 

FOTO: fotos: warner / divulgaçao
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Como diretora Lucia, Leandra Leal tem papel mais difícil do longa


Um dos principais deles é Lucia, personagem vivida por Leandra Leal. A atriz tem a tarefa mais difícil do filme, como a diretora do programa do Bingo – aquele papel ingrato da mulher que, no meio de uma grande Sodoma e Gomorra, tem que ficar falando “não transe, não beba, não cheire” para os outros. Mas Leal se recusa a interpretar uma evangélica recalcada e faz de Lucia o retrato respeitoso e feminista dos desafios vividos por uma mulher numa posição de comando, em um ambiente tão machista como um set de gravação nos anos 80.

“Bingo” só vai perdendo todo esse gás e essa subversão no ato final. Por mais que Rezende afirme que a produção teve liberdade para construir sua história, o roteiro ainda está preso à redenção encontrada por Arlindo Barreto – uma resolução anticlimática e fora do tom seguido pelo filme até ali.

O diretor faz o que pode, inclusive um elaborado plano-sequência que sai de um apartamento e termina em um quarto de hospital, após Augusto atingir o fundo do poço, para representar essa virada na trama. Mas o longa acaba se embebedando com as próprias cenas, sem saber o que cortar na tentativa de convencer o espectador de algo que ele mesmo não parece muito seguro, e perde o fôlego. O retrato da década do exagero fica ele mesmo exagerado – e careta, moralista. Uma piada sem graça encerrando o espetáculo de um palhaço que, até então, havia botado o circo abaixo.