Ao mirar as próprias mãos, Elifas Andreato, 73, teve uma epifania digna de James Joyce (1882-1941) e percebeu “que muitos anos haviam passado”. “O artista gráfico tem duas maneiras de ver o envelhecimento: ele trabalha sobre papéis e mesas brancas, e os cabelos negros sempre caem ali, os meus caíam muito. Depois, são as mãos que revelam o tempo nas manchas que se acumulam”, conta Andreato.
Desenhando um retrato de Martinho da Vila com lápis, o ilustrador paranaense notou que a imagem refletia, também, a sua própria condição. Diante dessa experiência ele retirou, com seu talento, um “aprendizado de vida e um trabalho pessoal e bonito”, declara. A referida capa do LP “Martinho da Vida” (1990) pertence a uma obra que se confunde com a história da música popular brasileira.
Desde 1970 nesse ofício, Andreato acumula, atualmente, cerca de 500 ilustrações para capas de discos, que em agosto ganharam uma exposição no Museu Afro Brasil, em São Paulo. O fio dessa meada remonta ao ano de 1971, quando Andreato foi contratado pela editora Abril Cultural para “um projeto gráfico bastante avançado para a época”. A missão era acompanhar os repórteres nas entrevistas com músicos, e, a partir daí, “coletar material” para sua arte.
Com o convívio, Andreato se tornou amigo dos jovens compositores que surgiam. Em 1972, retratou Paulinho da Viola para o álbum “A Dança da Solidão” e, um ano depois, criou a ilustração de “Nervos de Aço”, que “mudou o conceito de capa da música brasileira”, atesta Andreato. “O (César) Vilela tinha feito um trabalho lindo para o selo Elenco, do Aloysio de Oliveira, mas era para uma música mais sofisticada. Ocupei um espaço que estava vago na música popular”, observa Andreato.
A capa de “Nervos de Aço” é uma das prediletas de Zeca Baleiro, 53. O cantor maranhense prepara, para 2020, um CD de sambas inéditos, batizado de “O Samba Não É de Ninguém”. A capa, porém, já tem dono. Ela vai contar com o “traço poético, com profundo sentido social” de Andreato, como definiu o historiador de música brasileira e jornalista Ricardo Cravo Albin.
“Elifas é um artista genial, e, na esteira de alguns encontros, nos tornamos grandes amigos. Desde que concebi esse CD, pensei no Elifas porque, apesar de ter feito capas para artistas de todos os gêneros, ele ficou muito associado ao samba, fez ilustrações históricas para Martinho da Vila e Paulinho da Viola”, enaltece Baleiro. Neste ano, o autor do eterno hit “Telegrama” investiu em artes nos dois volumes de “O Amor no Caos”, com pinturas de Jesus Santos e Maria Luísa Serra Castro, conterrâneos do Maranhão.
“Acho que há um esgotamento dos formatos, e a ilustração abre possibilidades, é um recurso rico. Uma boa capa ‘vende’ o disco e antecipa o conteúdo para o ouvinte. Ela tem que ser sugestiva, instigante ou provocativa, de preferência”, afirma Baleiro, que admite “comprar discos pela capa”. “No caso dos vinis, que coleciono, uma boa capa pode até sobreviver a um disco ruim, ela independe do recheio, é uma obra em si”, destaca.
Arte. A cartunista Laerte, 68, conta que se sentiu “desbundada e feliz” ao receber o convite da gravadora Deck para ilustrar a capa de “Planeta Fome”, o novo disco de Elza Soares, 89. A arte agradou à anfitriã. “Merecia um prêmio”, reivindica Elza. “Procurei reunir imagens sugeridas ou evocadas pelas letras das canções. Até uma desentendida como eu sabe da grandeza da Elza dentro da cultura brasileira”, avalia Laerte, que teve como referência outras capas desenhadas por cartunistas e quadrinistas, como a de Robert Crumb para o disco “Cheap Thrills” (1968), da banda Big Brother and the Holding Company.
Graduada em pintura e gravura pela Escola de Belas Artes da UFMG, a mineira Leonora Weissmann, 37, retratou a cantora Mônica Salmaso e o violonista Guinga para o próximo disco da dupla. No caso de Mônica, ela partiu de uma fotografia feita por Lorena Dini. “A Mônica está abrindo a boca, como se estivesse prestes a cantar”, explica Leonora, que, com seu parceiro Julio Abreu, já ilustrou mais de 50 encartes, inclusive o de seu próprio disco, “Adentro Floresta Afora”. “Uma arte na capa de um disco agrega calor e identidade, tem a ver com afeto”, acredita Leonora.
Para o crítico musical Rodrigo Faour, 47, o investimento em artes nas capas é “uma forma de marcar presença e se diferenciar daquela música descartável que se consome em um mês”. “É um grito de guerra”, resume Faour.