Contra o racismo

Ao assumir o microfone na Flip, Diva fez sua voz ecoar país afora

Em passagem recente pela capital mineira, a educadora conversou com o 'Magazine' sobre literatura e educação

Por Patricia Cassese
Publicado em 14 de outubro de 2019 | 11:22
 
 
 
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E assim se passaram dois anos. Na verdade, um pouco mais. Foi no dia 28 de julho de 2017 que, em meio à plateia que assistia a uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) – composta por nomes como o ator Lázaro Ramos e a a portuguesa Joana Gorjão Henriques, a educadora Diva Guimarães decidiu pedir o microfone para dar um testemunho de vida. “Digo que sou uma pessoas antes e outra depois da Flip”, reconhece ela, entre sorrisos, ao Magazine, durante recente passagem pela cidade, onde participou do evento “Longeviver”, conduzido pelo grupo Meninas de Sinhá, do Alto Vera Cruz. “Da Flip para cá, estou vivendo só felicidade”, arremata a paranaense (do sul do estado).

Às vésperas do Dia do Professor, Diva sintetiza o contingente de pessoas que seguem firmes na defesa da educação ao alcance de todos. “A maior riqueza que a gente pode ter é o conhecimento”, advoga ela, que formou-se em educação física. 
Antes de seguir em frente, é preciso voltar à Flip. Mesmo quem não esteve presencialmente no evento ouviu falar do momento que emocionou Lázaro Ramos a ponto de levá-lo às lágrimas. “Sou gratíssima, gratíssima ao Lázaro e à plateia. Ali eles me acolheram com profundo respeito e ouviram com atenção o que falei”. Mas não foi só o ator. Tanto que, na sequência, Diva recebeu convites – e aceitou – de programas do naipe do “Conversa com Bial” ou “Encontro com Fátima Bernardes”, para citar alguns. 

Quem porventura não se atentou ao episódio pode estar se perguntando: mas, afinal, o que Diva falou? Bem, resumir a fala da neta de escravos seria no mínimo inconveniente. Mas pode-se dizer que, ao recontar passagens marcantes de sua vida, Diva revelou situações que escancaram o racismo vigente no país. Como o episódio que viveu no internato em São Paulo para o qual, na infância, foi levada. Lá, certo dia, uma freira reuniu as internas e contou uma história que teria se passado nos primórdios da humanidade. Segundo ela, Deus teria pedido aos homens que se banhassem em um rio, para que fossem abençoados. Os brancos, mais proativos, foram na frente. Já os negros – segundo a versão dela, “preguiçosos” – demoraram e, quando decidiram ir, a profundidade só era suficiente para lavar as palmas das mãos e a sola dos pés, únicas partes que ficaram brancas em seus corpos. Cruel? Absurdamente. Mas essa foi apenas uma das várias situações que Diva guarda tatuadas na memória.

Na verdade, aos 80 anos, a professora guarda tantas histórias que a pergunta que brota espontaneamente da boca de qualquer entrevistador é: “Não pensa em escrever um livro de memórias?”. A resposta, ela tem de bate-pronto. “Com o apoio de minha amiga, Maria Alice Pedotti, socióloga, até ensaiei escrever, mas não aguentei. Talvez porque tenha sido muito na sequência da Flip, a emoção foi demais”, explicita ela.

Mas Diva não descarta que um dia possa voltar a se debruçar sobre o projeto. Por ora, o que a enche de orgulho é estar viajando país afora (“na verdade, tenho que dispensar uma série de convites”, sorri, orgulhosa), em eventos como o que a trouxe a BH. Mas, principalmente, para falar sobre a importância da educação. “Tenho ido muito a escolas, principalmente as de periferia, para falar a crianças – em particular, negras –, que não desistam de seus sonhos! Que lutem por seu lugar de fala e que estudem bastante. É o que quero continuar fazendo até o último momento da minha vida”, garante. 

Perguntada como é a reação dos jovens, em uma era de hiperconectividade, diante das suas palavras, ela é só orgulho. “Muitos choram bastante, por vezes chegam até mim e dizem: ‘Não vou desistir por causa da senhora’”, narra ela, que não se furta a indicar leituras que considera importantes, como “Holocausto Brasileiro”, da mineira Daniela Arbex, e “Racismo em Português – O Lado Esquecido do Colonialismo”, de Joana Gorjão Henriques – sim, a escritora que estava na mesa da Flip. “Muito bom, esclarecedor, mas muito triste”, avalia. 

Aliás, foi a leitura de um livro em particular que descortinou horizontes desconhecidos à então jovem Diva. Mais precisamente, “As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, que ela passou a entender mais amiúde as peculiaridades do continente e, em particular, do Brasil. 

Claro, vieram outros livros, que revelaram a ela páginas infelizes da história, como o massacre de tribos indígenas no continente. “Aliás, não gosto dessa coisa de Dia do Índio, assim como Dia da Mulher, do Idoso ou Dia da Consciência Negra. Todo dia é dia de todo mundo. Na minha opinião, essas datas são estipuladas para fingir que estão fazendo alguma coisa por nós”, pontua ela. 

E cita as estatísticas de jovens assassinados, o que a faz temer que, em décadas, haja uma redução drástica no contingente de idosos negros. Em relação às políticas atuais de educação, ela também só tem a lamentar. “Às vezes, penso: ‘Meu Deus, não queria ter vivido para ver isso de novo. A ameaça de destruição da educação, a volta aos tempos do Brasil Colonial, onde só a elite tinha direitos”. Por outro lado, Diva Guimarães confessa ainda nutrir esperança de dias melhores. “Acredito nessa moçada. A gente tem que lutar. Acredito que virá uma mudança, mas sei que talvez não esteja mais aqui para ver. Um dia no qual as pessoas não serão tratadas de acordo com a sua cor, de sua casta”, conclui. 

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