Durante o velório de Júlio Barroso (1953-1984), os cantores Cazuza (1958-1990) e Lobão cumpriram o combinado de cheirar cocaína sobre o túmulo do amigo. Era um singelo tributo para aquele que ambos consideravam como o verdadeiro mentor da geração roqueira dos anos 80 no Brasil. Antes de sua trágica e precoce morte, aos 30 anos, ao despencar de uma janela de seu apartamento, em circunstâncias nebulosas, Júlio fundou a banda Gang 90 e Absurdettes.
O único álbum da trupe é tema da coleção “O Livro do Disco”, da editora Cobogó, que já analisou obras de Chico Science, Clara Nunes, Milton Nascimento e outros expoentes da música brasileira. Assinada pelo escritor, colecionador de vinis e DJ holandês Jorn Konijn, 42, a publicação começou a nascer quando o autor descobriu que, entre as vocalistas da Gang 90, havia uma conterrânea sua. “Nasci na Austrália, mas sou holandesa, tenho as duas nacionalidades”, conta Alice Vermeulen, 59.
Ela se mudou para a Holanda antes que pudesse colocar os pés na Austrália. Na época, era ainda um bebê de colo. O encontro com Konijn se deu pelas redes sociais, e ele logo começou a puxar a memória de Alice, principal fonte do livro. “Os fatos são difíceis de lembrar, as coisas emocionais ficam mais bem guardadas”, avalia Alice.
Aos recém-completados 21 anos, a jovem impulsiva que se formara em balé clássico pela Academia de Dança do Brabants Conservatorium, na Holanda, rumou para o Brasil em busca de aventuras. E encontrou. Em uma noite na Pauliceia Desvairada, boate de Nelson Motta em São Paulo, ela conheceu Júlio Barroso, que discotecava no local. “O Júlio era cheio de ideias, supercriativo, inquieto, cada hora inventava uma coisa, era uma pessoa impressionante”, observa Alice.
Rapidamente, a dupla se tornou um casal e engatou um romance “movimentado, com muita paixão e muitas brigas”. “Foi uma tempestade tropical. O Júlio vivia dizendo o tanto que me amava, eu nunca tinha experimentado nada tão intenso”, garante Alice. O passo seguinte, de criar uma banda, veio naturalmente. Assim como a decisão de adotar o nome artístico de Alice Pink Pank, em homenagem à bailarina alemã Liesel Pink-Pank.
Júlio acabara de voltar de uma temporada em Nova York, onde se encantou pela new wave, ritmo que prometera inserir na estética da Gang 90, mas que, na verdade, se revelou muito mais como um movimento anárquico para suas alucinações artísticas e pessoais. “Sabíamos que éramos os primeiros, que a gente estava abrindo portas para todos os estilos de rock que vieram depois”, informa Alice.
Em menos de um ano, o grupo emplacou hits como “Perdidos na Selva”, “Telefone” e “Nosso Louco Amor”, todas com a assinatura de Júlio. Na época, o Brasil vivenciava uma abertura política, após três décadas de ditadura. “No Brasil era tudo diferente do que eu estava acostumada, o que mais me chocava era a Polícia Militar”, conta Alice. Ela admite ter sentido dificuldades com o idioma português, mas diz que conseguiu se adaptar “falando devagar”.
Romance
“Noite e Dia” estava no primeiro álbum da Gang 90. Parceria de Júlio e Lobão, a música tinha Alice como musa. E foi logo após terminar com Júlio que Alice começou a namorar Lobão, com quem gravou o LP “Ronaldo foi pra Guerra” (1984). “Ainda tenho contato com Lobão, o nosso relacionamento foi muito louco, acho que fui ainda mais apaixonada por ele do que pelo Júlio”, confessa Alice.
“Me Chama” também foi composta para ela, quando a artista deixou Lobão e voltou ao país natal. “Só posso dizer que é uma honra para mim ser musa de duas canções que se tornaram tão importantes para a música brasileira”, agradece ela, que esclarece o motivo de seu retorno à Holanda. “Após seis anos de muita festa, eu estava pronta para coisas mais sérias”, conta, rindo. No mês passado, Alice voltou ao Brasil para lançar o livro. “Tinha esquecido como a natureza é deslumbrante”, elogia.
Maternidade
A convite do fotógrafo Luis Crispino, Alice Pink Pank posou nua para a “Playboy” em 1981, mas não saiu satisfeita. “Achei que fiquei muito exposta”, diz. Meses depois, voltou a aparecer sem roupas na revista, em uma edição dedicada às mulheres do rock. “Dessa vez, escolhi o quanto iria ganhar e como seriam as fotos”, diferencia.
Aos 59 anos, ela garante que sua “relação com o corpo é ótima” e aproveita “a força da maternidade”. “Ser mãe de uma garota de 22 anos é a coisa mais bonita que existe”, destaca. Ela mora com a filha na Holanda, onde Alice, longe dos holofotes, se dedica “ao caminho da meditação” e estuda para ser terapeuta.