Crítica

Cássia Eller canta Cazuza com ferocidade em íntegra de show

Novo álbum resgata dez registros inéditos em relação a “Veneno Vivo, de 1998, e mostra a cantora em ótima forma

Por Raphael Vidigal
Publicado em 10 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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No palco, Cássia Eller (1962-2001) sempre foi a melhor tradução da irreverência aliada à agressividade de Cazuza (1958-1990). Ela própria dizia que se convenceu de que poderia ser uma cantora quando morava em Brasília e, ainda adolescente, ouviu Cazuza literalmente berrar no rádio os versos de “Por Aí”, balada meio blues presente no primeiro disco do Barão Vermelho, de 1982. Os dois, inclusive, chegaram a travar contato. 

Em 1988, num show de Angela Ro Ro, foram apresentados pelo produtor Ezequiel Neves (1935-2010), mas a timidez de Cássia combinada com o esnobismo de Cazuza abreviou o encontro que poderia ter sido histórico. 

Só após a morte do poeta exagerado o primeiro capítulo dessa união umbilical predestinada na maternidade começou a ser escrito, ironicamente reunindo, exatamente, três personagens repetidas. Em 1994, Frejat ofereceu “Malandragem” para Cássia lançar. A música era uma parceria com Cazuza feita especialmente para Angela Ro Ro, que a rejeitara. 

No mesmo ano, Cássia registrou aquele que se tornaria o maior sucesso de sua carreira. Em 1997, outro encontro decisivo. Wally Salomão (1943-2003), que compôs para Cazuza a música “Balada de um Vagabundo”, gravada no álbum “Exagerado” (1985), encorajou Cássia a colocar em prática um desejo antigo: dedicar um disco inteiro à obra de Cazuza. O resultado foram dois: “Veneno AntiMonotonia”, registrado em estúdio, e “Veneno Vivo” (1998), com a gravação do show. 

Repertório

Mais de 20 anos depois, os berros dados por Cássia naquelas três noites no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, ainda ecoam. “Todo Veneno Vivo” é didático em seu título e contempla a íntegra da apresentação majestosa que resultou no segundo trabalho ao vivo de Cássia, agora acrescido de dez registros inéditos. São eles “Blues da Piedade”, “Por que a Gente É Assim?”, “1º de Julho”, “Só as Mães São Felizes”, “Preciso Dizer Que Te Amo”, “A Orelha de Eurídice”, “Menina Mimada”, “Mal Nenhum”, “Beth Balanço” e “Pro Dia Nascer Feliz”. 

Todas as faixas integram a discografia de Cássia, mas em momentos diferentes da carreira. O que se percebe nesses números é a capacidade da intérprete de deglutir uma canção e entregar ao público seu osso. Ou seja, Cássia, no palco, devorava as canções ao ponto de torná-las suas, mantendo intacta somente a essência, ou a parte mais inflexível, responsável por dar sustentação ao alimento musical. Ao menos, no caso de Cazuza e de obras de Luiz Melodia, Renato Russo, Rita Lee e Lobão, amigos do homenageado que comparecem no repertório. 

Há sacadas que podem ser colocadas na conta de Wally Salomão e que funcionam bem, como juntar versos do samba “São Coisas Nossas”, composto por Noel Rosa em 1932, a “Brasil”, hino político de Cazuza que não perde a vitalidade. As citações prosseguem em “Pro Dia Nascer Feliz”, que lança mão de “Satisfaction” e “Let’s Spend The Night Together” clássicos dos Rolling Stones. 

Em “Ponto Fraco”, Cássia chega a imitar a língua presa de Cazuza. Outro bom exemplo é a estratégia adotada com “Menina Mimada”, que é sucedida pela declamação de trecho do poema “Tópicos para uma Semana Utópica”, de Cazuza: “Olhar o mundo com a coragem do cego/ ler da tua boca as palavras com a atenção do surdo/ falar com os olhos e as mãos como fazem os surdos”. 

O entendimento de Cássia do âmago de Cazuza surge na percepção dolorosa e suave do desencanto de “Preciso Dizer que Te Amo”, assim como na sordidez dos versos concebidos para escandalizar de “Só as Mães São Felizes”. Cazuza era capaz de dizer que: “Até o tempo passa arrastado/ Só pra eu ficar do teu lado”. E, ao mesmo tempo: “Você nunca sonhou ser currada por animais/ Nem transou com cadáveres/ Nunca traiu teu melhor amigo/ Nem quis comer a sua mãe”. Cássia deglutiu e entregou melhor do que ninguém o osso desse discurso. Agora, inteiro.

Faixas:

1. “Brasil”
2. “Blues da Piedade”
3. “Obrigado (Por Ter Se Mandado)”
4. “Por que a Gente É Assim?”
5. “Todo Amor que Houver Nessa Vida”
6. “1º de Julho”
7. “Só as Mães São Felizes”
8. “Vida Bandida”
9. “Ponto Fraco”
10. “Preciso Dizer que Te Amo”
11. “Nós”
12. “Mis Penas Lloraba Yo”
13. “Billy Negão”
14. “Farrapo Humano”
15. “Faça o que Quiser”
16. “A Orelha de Eurídice”
17. “Menina Mimada”
18. “Mal Nenhum”
19. “Beth Balanço”
20. “Amor Destrambelhado”
21. “Todas as Mulheres do Mundo”
22. “Geração Coca-Cola”
23. “Pro Dia Nascer Feliz”
24. “Eu Queria Ser Cássia Eller” 

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