Criador do Festival de Arte Negra (FAN) e colaborador da revista eletrônica Pessoa, o poeta, artista visual, cantor e editor belo-horizontino Ricardo Aleixo acaba de lançar “Antiboi”, seu novo livro de poesias. Ao Magazine, ele fala sobre a publicação e disseca os temas que o inspiraram, comenta a participação na Flip em homenagem a Lima Barreto e revê sua trajetória literária iniciada há 40 anos, além de exaltar três ídolos musicais.
Por que a escolha do poema “Antiboi” para dar título ao livro?
Acho que é o poema que melhor exemplifica o conjunto da obra e a circunstância em que ela surgiu, naquele interregno de junho de 2013 aos dias atuais, quando o Brasil começou a ser desmanchado e a perplexidade passou a ser minha companheira diária, vendo a fragilidade do exercício democrático. As contradições que deram margem a esse estado de coisas que vemos agora começaram a se anunciar naquele momento e nos trouxeram, desde então, aquela dificuldade de abrir os olhos todos os dias para o que está acontecendo. Comecei a postar esses poemas na rede social, sem recurso, apenas como uma realização icônica e da falta de perspectiva que vivíamos, pela necessidade de inventar novos caminhos. Nesse contexto nasceu o “Antiboi”, que, à primeira vista, me parecia só uma pilhéria, engraçadinho, mas a força dos acontecimentos me revelou a expansão do que estava ali dito, pois a Constituição, o voto, a democracia, nenhum deles está garantido. Diante disso, não tive dúvida de que o livro só poderia ter esse título. Para completar, escolhi um trabalho da Rosana Paulino, que é uma artista plástica muito importante, para ilustrar a capa, já que ela traz uma associação constante da memória das mulheres negras, da dor e da invisibilidade, com um refinamento estético magnífico.
De que maneira o lirismo e a questão política convergem em sua obra?
Não tem saída, só posso fazer dessa forma. A poesia me chegou exatamente há 40 anos, quando eu tinha 17, e não me deu a possibilidade de escolha. Eu me apliquei a ela como uma escolha única e fiz uma declaração de princípios para mim mesmo, que foi viver e morrer disso, tentar aprender e extrair ao máximo tudo dessa arte dificílima. Num país de contínuos desastres, como o nosso, não é possível compor uma poesia alheia ao entorno, e eu, como sujeito negro e oriundo de uma família pobre, de periferia, não posso nem consigo deixar de ver as coisas que me circundam o tempo todo. Desde os meus primeiros experimentos, sempre tive uma ligação com os poetas que frisaram uma ligação entre o lirismo e a política, como Brecht, Maiakovski, Luís Gama, Mário de Andrade, Haroldo de Campos, que é de, principalmente, tensionar a linguagem, entendendo-a como campo de disputa simbólica. O fato de eu ser negro aponta para essa questão de modo ainda mais urgente e forte, porque a linguagem não me chega como direito de herança, ela é sempre fruto de uma disputa, então essa é a forma que tenho de devolver para a coletividade o que veio dela. Eu não inventei a poesia brasileira, sou apenas mais um fruto dela.
Em seu processo criativo, qual lugar ocupam o estudo e a intuição?
É tudo resultado de um trabalho incessante. A inspiração, quando me visita, é porque percebe que estou trabalhando o tempo inteiro, e vem para me premiar. Não é gratuita, do nada, mas porque estou em busca de caminhos. Agora, a intuição é importantíssima, eu a considero minha terceira mãe. A primeira é Íris, minha mãe biológica, e a segunda, a poesia, que me reinventou e renasceu. Comecei fazendo poesia de maneira muito cerebral, achando que dava para separar as duas instâncias, coisas do meu signo de virgem. Mas descobri, com o tempo, que não existe essa possibilidade, porque passei a me dar conta da relação com outras linguagens, como a música, a dança, em que estou sempre mais exposto à intuição. Têm aqueles versos famosos do Fernando Pessoa, do poema “Tenho Tanto Sentimento”, que falam sobre essa relação, dessa mescla contínua, de que o estado de pensamento é sempre atravessado pelas emoções.
Num dos poemas do livro, “Rainha Onça”, você cria uma palavra nova. Que importância você dá a esse tipo de liberdade linguística?
O poeta é aquele que vai lá e faz, os gramáticos que se virem depois. Neste poema a alteração não é só de gênero, eu também transformei o substantivo em verbo. O filósofo problematiza a origem e o uso da linguagem, enquanto para o poeta existe essa premência de liberdade. Ele problematiza criando mundos que serão instaurados. É outra história que não acontece apenas na reflexão. Ele vai lá e lança mão, como diz o Luiz Melodia: “Tá tudo solto na plataforma do ar, tá tudo aí”.
Além de Luiz Melodia, você presta homenagem a Milton Nascimento e Elza Soares no livro. Que importância eles têm para você?
São três amores. Cada um deles, por razões diferentes, ajuda a compor as várias paisagens possíveis da experiência negra no Brasil, fundindo vida e arte. Essas pessoas trazem um exemplo vivo que não se apaga com a morte delas, como Itamar Assumpção, Luiz Gonzaga, são sinais de resistência ativa. A Elza praticamente esperou uma vida inteira para ser dona do seu próprio repertório e desejos musicais. Antes disso gravou muitas coisas aquém dela. O Milton, no meu entender, foi, desses três, o que teve mais liberdade, tanto no repertório como no tratamento musical, dos arranjos, concepções, e tem essa capacidade gregária, da esquina, encruzilhada, por onde passam tantas informações, o que Naná Vasconcelos sabiamente chamou de “África mineira”. Isto, com a intuição do Luiz Melodia de inscrever a música em seu corpo e o entendimento radical da voz de Elza Soares, que diz cantar para não enlouquecer, nos dá exemplos puros de artistas que estão na vanguarda, porque nos atentam também para confrontos nítidos e a emergência de novos racismos no Brasil, com a definição muito precisa de estratégias de verdadeira dizimação da população negra brasileira. Portanto, saudá-las é também saudar o direito à vida.
Uma parte do livro é dedicada à perspectiva memorialista. Por que essa escolha?
Jamais deixo de revisitar meus momentos de entrada no mundo; Em todos os livros que já lancei até hoje essa questão retorna. Vivo na mesma casa onde cresci e que foi a última dos meus pais até hoje. Portanto, a reflexão da memória é algo inescapável para mim, também porque tenho a certeza de que tive a melhor mãe e o melhor pai do mundo eles foram pessoas gentis que amaram muito a mim e a minha irmã, exemplos do que devemos ser para os nossos filhos. Não sei se eles tinham noção de que eu poderia ser um poeta e artista, mas essa presença deles me incentivou e ajudou muito no seguimento da minha carreira profissional, porque foi tudo vivido sempre com muita alegria. Eu não gosto da palavra “família”, estou parando de usar, mas nada na minha vida, nenhuma experiência política, artística ou cultural, foi mais forte que a afetiva.
Como foi participar da Flip deste ano em homenagem a Lima Barreto?
Foi ótimo ver um autor iconoclasta, um pré-moderno mais moderno do que os modernos, ser exaltado. Mas a representatividade no Brasil ainda é nula, quanto mais numa população em que 54% das pessoas se definem como negras. Eu vejo mais negros na TV quando vou para Alemanha e França do que aqui. É uma vergonha. E o nosso público consumidor é majoritariamente negro. Existe uma “conversa fiada para boi descansar” nessa história toda. Vimos na Flip o que foi essa inversão de lógica, precisamos avançar.