Debate

É possível desvincular a obra do autor quando ele é acusado de algum delito?

Protestos contra Roman Polanski no César e cancelamento da autobiografia de Woody Allen reacendem a polêmica

Por Raphael Vidigal
Publicado em 16 de março de 2020 | 03:00
 
 
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As mãos estão cheias de sangue e, ao olhar-se no espelho, a imagem refletida é a de um homem em trajes femininos, com uma peruca castanha na cabeça e olhar assustado. Esta é uma cena de “O Inquilino” (1976), um dos filmes mais perturbadores de Roman Polanski, e ninguém poderá assegurar que ela aconteceu na vida real, embora a personagem principal também fosse interpretada pelo diretor. 

Fato é que, um ano depois, em março de 1977, Polanski seria preso na casa do ator Jack Nicholson, em Los Angeles, nos Estados Unidos, por abusar sexualmente de uma menor de idade, a jovem modelo Samantha Geimer, de 13 anos, após oferecer bebidas e drogas a ela. 

Àquela altura, a biografia do cineasta já contava com tragédias pessoais das quais ele fora vítima, como a morte de sua mãe, judia e grávida, nos campos de concentração nazistas, e o assassinato de sua esposa Sharon Tate, de 26 anos, pela seita satânica de Charles Manson, com várias facadas na barriga, quando ela estava prestes a dar à luz seu primeiro filho. 

Desta vez, ele assumia o papel de carrasco, ao confessar o crime contra Samantha e escrever uma carta pedindo desculpas para ela e sua mãe. Polanski se entregou à polícia e passou 47 dias na cadeia. Solto com base em um exame psiquiátrico, foi informado por seus advogados de que seria preso novamente e resolveu partir para a Europa, tornando-se um foragido da Justiça norte-americana. 

Nos últimos anos, outras cinco acusações de estupro surgiram contra Polanski, todas negadas por ele. Há duas semanas, o franco-polonês foi anunciado como vencedor do César, o Oscar do cinema francês, nas categorias de melhor diretor e roteiro adaptado por “O Oficial e o Espião”, cuja tradução literal do título original é “Eu Acuso”.

Quando isso aconteceu, as apresentadoras Florence Forestier e Sandrine Kiberlain se recusaram a dizer o seu nome. No mesmo instante, várias atrizes ficaram de pé, não para aplaudir, e, sim, deixar a cerimônia. Entre elas estava Adèle Haenel, protagonista de “Retrato de uma Jovem em Chamas”, que levou o troféu de melhor fotografia. 

Adèle tornou-se uma das principais ativistas do movimento #MeToo (surgido em Hollywood contra a cultura do assédio) na França, ao denunciar, em novembro de 2019, o diretor Christophe Ruggia por abuso sexual quando ela era uma adolescente. A decisão da atriz veio depois de ela assistir ao documentário “Deixando a Terra do Nunca”, em que dois homens se declaram vítimas de abusos sexuais praticados por Michael Jackson. 

“Estamos aprendendo a lidar com esses novos tempos, onde essas questões vêm à luz. É bom que estejamos conseguindo fazer denúncias e que as pessoas que foram violentadas e abusadas tenham algum tipo de reparação, visibilidade e voz”, opina a cineasta e apresentadora Marina Person.

“O feminismo veio como uma bandeira importante porque, durante anos, as mulheres ficaram à mercê de homens poderosos. O assédio, em definição, pressupõe uma hierarquia, por isso é tão comum na indústria. Todos esses movimentos têm gerado um ambiente mais seguro para as mulheres”, completa ela. 

Separação. Para o crítico de cinema Luiz Zanin, “a obra não pode servir de álibi para o artista, um biombo onde ele se esconde”. “O cara pode ser genial, mas, se comete um delito, é um cidadão como outro qualquer sob o regime da lei”, observa. Apesar disso, ele considera “perfeitamente possível separar a pessoa física da obra”, e cita casos históricos, como o do pintor Caravaggio, que matou um homem, do escritor Céline e da estilista Coco Chanel, que colaboraram com o nazismo, e do compositor Richard Wagner, antissemita assumido. “Me parece óbvio que a obra tem um caráter autônomo e que ela pode ser apreciada de forma independente. O delicado é saber se aquela postura condenável aparece na estrutura da obra”, diz Zanin. 

Marina concorda que é preciso “evitar cancelar obras de pessoas que eram abjetas na vida pessoal”. “Primeiro porque ficaríamos sem grandes obras, e, segundo, porque o ser humano é complexo. Todos temos defeitos, alguns são mais perigosos”, declara. Mas Marina não esconde “o incômodo, como mulher e ser humano, com a premiação para Polanski”. “Achei inadequado. Não entendo como alguém que não cumpriu a pena pelo crime que cometeu continue fazendo filmes”, lamenta ela. 

Zanin tem outra perspectiva. Ele admite que assistiu a “O Oficial e o Espião” para conferir “se procediam as acusações de que Polanski usa a história para se declarar tão injustiçado quanto o protagonista”. No longa, o diretor retoma o histórico “Caso Dreyfus”, que condenou injustamente um capitão do exército francês em 1894. “Não vejo nada no filme que indique que ele tirou proveito em causa própria”, diz Zanin. “Tenho restrições ao comportamento do Polanski com as mulheres, mas o filme é ótimo”, completa.

O músico Rogério Skylab atenta para “o risco de transformar o campo artístico em um tribunal moral”. “A principal função da arte é produzir um mundo paralelo e proporcionar o encontro com o outro e o diferente. Você pode encontrar pessoas ilibadas, corretas, e, no entanto, imaginativamente, serem um zero à esquerda”, conclui. 

Cancelamento. A expectativa pela publicação da autobiografia de Woody Allen, 84, durou dois dias. Foi o tempo que a editora francesa Hachette levou para cancelar “A Propósito de Nada”, que estava programada para abril. A decisão veio depois de protestos dos próprios funcionários da empresa, que se juntaram a um coro público. Há anos o cineasta octogenário é atormentado por denúncias de assédio sexual contra Dylan Farrow, sua filha adotiva com a atriz Mia Farrow. 

A despeito de negar as acusações, o fato de atualmente ser casado com Soon-Yi Previn, outra enteada que Allen teve com Mia, não melhorou as coisas para ele. Com a criação do movimento #MeToo, várias atrizes começaram a se recusar a trabalhar com o diretor de clássicos como “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” e “Manhattan”. O seu último filme, “Um Dia de Chuva em Nova York”, não estreou nos Estados Unidos. 

“Tenho visto que os boicotes aos filmes de determinados realizadores, ou mesmo ações contra os cineastas, e não necessariamente sobre seus trabalhos, têm surtido efeitos importantes. Não se trata de atos pensados como forma de punição. Mas, sim, para que se chame a atenção da sociedade e dos grandes estúdios e investidores para que tais artistas sejam responsabilizados, sobretudo legalmente, pelos seus crimes”, diz Marina de Morais.

A cineasta, pesquisadora e professora de cinema dirigiu o documentário “Assédio Não É Elogio”, de 2017. “Mais do que isso: é importante que os artistas não sejam endeusados e que tais condutas não sejam vistas quase como uma premiação”, complementa a diretora mineira. 

O músico Pablo Castro se vale de uma frase do compositor Zé Rodrix. “Deveríamos venerar as obras mais do que os autores”, avalia. “A indústria cultural radicalizou a idolatria de massas, a preocupação novelesca com as estrelas, mercantilizou suas vidas privadas tanto ou mais do que seu trabalho artístico, enquanto, ao mesmo tempo, apostou no vazio do entretenimento e deseducou o público a querer sempre mais do mesmo”, analisa o mineiro. 

O crítico de cinema Inácio Araújo vê “um cenário de intolerância, com discussões ralas”. “Para mim, importa saber se a obra é boa ou ruim, claro que há ramificações na vida da pessoa. Toda a humanidade tem seu lado perverso”, finaliza Araújo. 

Artistas consagrados tiveram comportamentos condenáveis

Cellini (1500-1571)
Autor de obras como “Leda e o Cisne”, o escultor italiano, nascido em Florença, matou o assassino de seu irmão em 1529. Na mesma época, foi responsabilizado pelo homicídio de um ourives. Acabou preso sob a acusação de trocar as gemas da tira papal. Ironicamente, o Papa Paulo III o livrara dos outros crimes. 

Caravaggio (1571-1610)
Principal nome da técnica de pintura conhecida como “claro-escuro”, o artista italiano passou os quatro últimos anos de vida fugindo da Justiça. Ele foi condenado à prisão pelo assassinato do procurador e mercenário Ranuccio Tomassoni. A briga foi motivada por uma desavença entre eles após um jogo de azar. 

Arthur Rimbaud (1854-1891)
O poeta francês é considerado o maior de todos os tempos por pares do porte de Vinicius de Moraes e Henry Miller. Com apenas 17 anos, ele produziu a sua obra-prima, “Uma Temporada no Inferno”, considerada pioneira do simbolismo. Aos 20 anos, ele abandona a escrita e viaja para a África, onde trafica armas. 

Ezra Pound (1885-1972)
Expoente do modernismo na poesia norte-americana, Pound criou movimentos como o Imagismo e o Vorticismo. Em 1924, ele se muda para a Itália e passa a defender o fascismo, com pronunciamentos no rádio durante a Segunda Guerra Mundial. Preso em 1945, fica internado por 13 anos em um hospital psiquiátrico. 

Jean Genet (1910-1986)
Ao longo da vida, o dramaturgo parisiense praticou diversos roubos, o que ficou evidente em seu livro de memórias intitulado “Diário de um Ladrão”. Filho de uma prostituta com pai desconhecido, Genet foi dono de uma trajetória errante que refletiu em sua escrita rebelde, inconformada e crua, como na peça “O Balcão”. 

Klaus Kinski (1926-1991)
Protagonista de filmes como “Nosferatu” e “Aguirre: a Cólera dos Deuses”, o ator alemão admitiu em sua autobiografia que mantinha relações incestuosas com as próprias filhas. Pola denunciou que foi abusada por ele da infância à adolescência. A filha e também atriz Nastassja Kinski não compareceu ao velório do pai. 

James Brown (1933-2006)
O “Pai da Soul Music” colecionou sucessos com a mesma frequência em que teve de enfrentar problemas na Justiça. Famoso por hits como “Sex Machine” e “I Feel Good”, reconhecido como virtuoso dançarino, o músico foi preso repetidas vezes por violência doméstica contra mulheres e pelo porte de arma e de drogas. 

Lindomar Castilho (1940)
O cantor goiano era tido como o “Rei do Bolero”, graças a sucessos como “Você É Doida Demais”. Em 1979, ele se casou com Eliane de Grammont. Os ciúmes do marido levaram à separação. Em 1981, ele assassinou a ex-mulher com cinco tiros pelas costas e foi condenado a 12 anos de prisão. Em 1996, acabou solto. 

Bernardo Bertolucci (1941-2018)
Em entrevista para a Cinemateca Francesa, em 2013, o diretor italiano conta que a atriz Maria Schneider não foi avisada sobre a cena do filme “O Último Tango em Paris”, em que o ator Marlon Brando pratica sexo anal com ela, se valendo de uma manteiga como lubrificante. Schneider nunca se recuperou do trauma. 

Michael Jackson (1958-2009)
Durante a carreira, o astro pop conviveu com várias denúncias de abuso sexual contra crianças. A primeira aconteceu em 1993. Em 2002, surgiram novos casos, mas Michael acabou absolvido em 2005. Após a sua morte, o documentário “Deixando a Terra do Nunca”, de 2019, apresentou outras acusações de pedofilia. 

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