Um escritor, no domínio da área livre da expressão literária, tece contos em que crianças são mortas. Atravessando a fronteira da ficção, a cidade em que ele mora é surpreendida com uma série de infanticídios, realizados exatamente como imaginou o escritor. Ele é o assassino? Incitou os crimes? Ou simplesmente exerceu sua arte?
Essa sinopse que se refere ao espetáculo “The Pillowman – O Homem Travesseiro”, que será apresentado hoje e amanhã, no Palácio das Artes, suscita uma pergunta que engasga respostas. Pode um artista ser culpado ou responsabilizado pelo que provoca no seu público?
O questionamento vem do texto “The Pillowman”, escrito em 2003 pelo dramaturgo e cineasta britânico Martin MacDonagh. Da pergunta central da obra, surgem outras que também seguem abertas à reflexão. Existe um limite ou uma ética para a arte? “Eu também me pergunto sobre isso. As concepções artísticas são escolhas que dizem da ética do artista e o limite da arte depende da ótica de cada um. Não respondemos nada no espetáculo porque não há uma resposta verdadeira e universal”, afirma Bruno Guida, que, além de dividir a direção com Dagoberto Feliz, também atua no espetáculo.
O contexto em que a trama de “The Pillowman – O Homem Travesseiro” se passa é de um regime totalitário em que a censura se apresenta na suspeita de toda a cidade e na violência da polícia que busca encontrar a causa dos crimes. A peça é centrada no interrogatório feito com o escritor em função do conteúdo de seus contos.
“A última coisa que sobra aos homens é a imaginação. Até que ponto é ético censurar o que se imagina ou a criação do artista? Censurar uma obra é cortar a imaginação e o poder de ter contato com a imaginação do outro”, comenta Guida. “Mesmo as ideias de Jair Bolsonaro ou Marco Feliciano, dois boçais na minha opinião, não deveriam ser censuradas, por mais que dê vontade. O lugar é o do questionamento e não da censura”, completa.
Levando a pergunta do espetáculo para o próprio ofício de ator, Flávio Tolezani, que interpreta Katurian, o escritor, defende o lugar da liberdade artística. “O artista vive um descrédito muito grande na sociedade. Quando ele faz algo que não está no campo da realidade, não deveria ter responsabilidade sobre a forma como as pessoas vão reagir porque aquilo é arte, não é para ser copiada. Mas as coisas não são tão simples assim para todas as pessoas. Mas, pessoalmente, penso que o receptor também tem sua parte nessa história”, afirma.
Mas, no texto de MacDonagh, a leitura é aberta com algumas pitadas que suscitam a dúvida. O irmão de Katurian, deficiente mental, também é preso e interrogado. Os pais deles morreram há alguns anos, o que levou o escritor a se tornar também pai do próprio irmão. “Eles parecem ter um certo desvio do padrão social. Não se enquadram na sociedade”, conta o ator.
Sob tortura, os depoimentos dos irmãos vão modificando as primeiras conclusões que os público possa ter criado. “A peça tem 2h40 de duração, que só são possíveis de sustentar porque o autor escreveu diversas reviravoltas na história e não fechou nenhuma questão. Tem dia que eu saio da apresentação achando que Katurian é culpado, tem dia que o acho inocente”, comenta o diretor. “Mas, por mais que a peça traga um tema delicado, o infanticídio, e tenha toda essa duração, o que a gente procura não esquecer é que o espetáculo é um espaço de reflexão e também de entretenimento que não dita regras na cabeça de ninguém”, reforça.
Agenda
O quê. Espetáculo “The Pillowman – O Homem Travesseiro”
Quando. Hoje, às 20h, e amanhã, às 19h
Onde. Teatro João Ceschiatti (av. Afonso Pena, 1.537, centro)
Quanto. R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)