Berlim, Alemanha. O cinema brasileiro está repercutindo na 70ª Berlinale. A “Variety”, a “Bíblia” do showbiz dos EUA, mapeia a atitude do governo de Jair Bolsonaro com o cinema brasileiro, mas lamenta não abraçar com entusiasmo o filme de Marco Dutra e Caetano Gotardo, “Todos os Mortos”, exibido no domingo. O longa está disputando o Urso de Ouro.
 
Já a “Screen International” foi mais receptiva, e no quadro de cotações da revista, com críticos de todo o mundo, “All the Dead Ones” (título em inglês) ganhou o máximo de estrelas – quatro – de um crítico da China e, por duas vezes, três (no caso, de profissionais da Alemanha e da Inglaterra). O festival já adentrou a sua segunda metade – a premiação ocorre no sábado, 29, ficando o domingo, 1º, para a reprise da competição (e dos vencedores de todas as seções). 
 
Esta segunda-feira começou com um filme em língua francesa “Effacer L’ Historique” (“Deletar a História”), dos belgas Benoît Delépine e Gustave Kervern, que retrata uma “tragédia” da vida moderna: a dependência em relação aos celulares. Em cena, um trio de personagens. Três histórias cruzadas que seriam cômicas, se não fossem trágicas – mesmo assim, o filme é para rir, e o público de jornalistas riu muito.
 
Uma profissional de ponta que perdeu o emprego numa usina nuclear porque ficou viciada em séries e nem detectou o vazamento que estava ocorrendo na sua cara. Ela vai trabalhar num sistema de transporte de luxo, mas tem avaliações baixas – que precisa apagar. Os outros dois também precisam deletar vídeos comprometedores. A segunda mulher, o sexo que fez com um desconhecido e que ele gravou para chantageá-la. Já o homem do trio inicia um romance à distância, mas seu problema é o vídeo em que a filha sofre bullying na escola. 
 
Face ao pesadelo da comunicação nos tempos modernos, com seu incentivo ao consumo e às informações falsas, Delépine e Kervern propõem o retorno à simplicidade. Meio fantasioso, mas o filme leva jeito de repercutir – e agradar principalmente os que se sentem retratados na tela. Delépine e Kervern são veteranos em Berlim, onde já mostraram “Mamute” e “Saint Amour – Na Rota do Vinho”, ambos com Gérard Depardieu. E teve também “Sibéria”, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe como um homem que se isola do mundo, mas que não consegue se livrar dos fantasmas do passado.
 
O filme de produção italiana tem cenas fortes, como se espera de Ferrara, mas não chega a trazer nada muito novo ao universo sórdido e violento do autor. Dafoe aproveitou para dizer que, na vida como na arte, tudo o leva a Ferrara. “Volto sempre a ele, e não só como amigo. Possuímos uma conexão muito forte quando se trata de colocar na tela sentimentos profundos. Abel é um autor visceral. Joga-se no filme como se sua vida dependesse disso. Gosto dessa radicalidade”, frisou. Nas seções paralelas, a retrospectiva do cineasta King Vidor tem permitido ao público revisitar clássicos. Há dois anos, Dafoe recebeu o Urso de Ouro de carreira – prêmio que, na quinta, 27, irá para Helen Mirren. 
 
Dona da casa, a Alemanha sempre emplaca diversos filmes na Berlinale e ainda tem a Perspective Deutsches Kino, com novas tendências. Na mostra competitiva, dois filmes já foram exibidos. Um é questão de tempo para chegar ao Brasil – foi comprado pela Imovision. “Undine”, de Christian Petzold, transpõe o mito grego de Ondina para uma Berlim em transformação. Traz Paula Beer e Franz Rogowski, a mesma dupla de “Em Trânsito”, do mesmo diretor. Aqui, Paula é a moderna Ondina, e, como na mitologia, representa o amor absoluto. De cara, adverte ao amante que o matará – se for infiel. Petzold mistura Bach com Bee Gees na trilha e impõe à sua atriz um caminhar meio robótico, que só Rogowski não vê. Se prestasse atenção, talvez se desse conta da sinuca em que se está metendo. 
 
Melhor é “My Little Sisters”, de Stéphanie Chuat e Véronique Reymond, com Nina Ross e Lars Eidinger, o oficial alemão do belo “Persian Lessons”. O longa do ucraniano Vadim Perelman, aliás, virou a sensação. Os norte-americanos estão promovendo um leilão que jogou o preço dele no alto, não se sabe direito se para lançar nos cinemas ou fazer o remake. Hollywood adora as (boas) histórias de Holocausto. Voltando a “My Little Sister”. O grande problema, se é que chega a ser um, é que já ganhou o rótulo de drama pequeno-burguês. 
 
Há um casal em cena, com dois filhos. São intelectuais – a personagem de Nina, dramaturga. Só que a relação dissecada por Stéphanie e Véronique não é bem a de marido e mulher, mas a de irmãos. Nina é, na verdade, irmã gêmea de Eidinger. Porém, mais nova, “little sister”, por ter nascido dois minutos depois. Ele é ator. E está morrendo de câncer. Nina tem uma dedicação absoluta, obsessiva pelo irmão. Doa sangue, submete-se a um transplante. Nada dá certo.
 
Todos tentam chamar Nina à razão. Ela, porém, briga com todo mundo, isola-se. É um filme muito bem feito – e, principalmente, muito bem interpretado. Nina já é candidata a melhor atriz, mas disputa com Mawisi Tulani, que faz a ex-escrava do brasileiro “Todos os Mortos”.