Entrevista

Lutas épicas e lágrimas líricas

O premiado jornalista Mário Magalhães debate no Sempre um Papo a biografia que escreveu sobre o ano de 2018

Por Raphael Vidigal
Publicado em 16 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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Por telefone, Mário Magalhães realiza um pequeno preâmbulo antes de entrar no tema principal. “O nosso colega Gay Talese demoniza o gravador, mas eu acho importante para ser fiel à fala do entrevistado”, diz, em referência ao jornalista norte-americano. Ao Magazine, Magalhães fala do lançamento de seu novo livro, “Sobre Lutas e Lágrimas: Uma Biografia de 2018”.

Na sinopse do livro são mencionados vários acontecimentos históricos e inusitados. Qual deles é o mais representativo de 2018?

O ano de 2018 foi tão alucinante e influente para a história do Brasil, que é impossível destacar um só acontecimento ou personagem, por isso eu considero que há três protagonistas e três datas-chave, que são o assassinato da Marielle Franco em 14 de março; a prisão do Lula no dia 7 de abril; e o triunfo do Bolsonaro nas urnas em 28 de outubro. Essas três personagens são fundamentais porque concentram o que o ano tem de mais sombrio e luminoso, egoísta e generoso, tolerante e intolerante. Elas aparecem do início até o final do livro, em vários capítulos. O Lula comenta a Copa do Mundo, o Bolsonaro afirma que revogaria a lei do feminicídio e a chama de “mimimi” e também diz que não poderia fazer nada em relação ao Museu Nacional porque ele já tinha sido queimado, a caminhada da Marielle também vai pontilhando o livro, na medida em que os valores defendidos por ela vão sendo prestigiados ou rejeitados. Por isso, de fato, os três não apenas definem o ano de 2018 como, acompanhando a trajetória de cada um deles, vamos entender porque 2019, a rigor, é mais do que uma continuação cronológica de 2018 e vai pesar tanto na nossa história, porque ela é existencial. Eu considero o livro uma biografia porque tomo emprestada a expressão do Zuenir Ventura, que fala sobre o “ano personagem”. 

Um ano e cinco meses depois, qual sua avaliação sobre a prisão do ex-presidente Lula? 

A prisão do Lula vai definir o resultado das eleições de 2018, e essa é a sua principal relevância. Ele não apenas aparecia em primeiro lugar nas pesquisas, como estava abrindo vantagem em relação ao segundo colocado, Jair Bolsonaro. Acho legítimo considerar o Lula honesto ou ladrão, culpado ou inocente, o que não se sustenta mais é que ele tenha sido submetido a um processo justo, e o livro mostra isso, desde janeiro de 2018, com o julgamento do TRF-4, e recuperando o passado de como o processo foi conduzido, com todos os prazos, métodos e idiossincrasias da Lava Jato. Durante o julgamento do TRF-4, um dos desembargadores chega a dizer, com outras palavras, que se o sujeito é réu é porque alguma coisa ele aprontou, o que fere o princípio da Constituição da presunção de inocência. Se essa convicção do desembargador fosse levada a cabo em todo o planeta, ela significaria a inexistência de inocentes, afinal para quê julgar alguém que é réu se já se pressupõe que ele seja culpado? A Lava Jato, que no início parecia uma ação contra a corrupção, se revela um projeto político que tem como principal consequência levar à presidência um extremista de direita. 

Um ano e meio após o assassinato da Marielle, o que representa o não esclarecimento do crime até hoje? 

As mortes de Marielle e Anderson concentram todo o ódio político que admite a eliminação física do divergente. A falta de esclarecimento desses assassinatos está diretamente associada à tolerância do Estado brasileiro com a perseguição e a violência contra inimigos políticos. Um desafio que eu tive ao narrar um ano barra-pesada como o de 2018 foi começar ele com uma história mais leve. Então eu abro o livro com o réveillon da Marielle e conto como ela passou a virada com a sua companheira Mônica Benício, revelo que elas planejavam se casar no dia 7 de setembro de 2018 em Búzios, na areia da praia, e que queriam ter um filho juntas, com o material genético da Mônica e a gestação da Marielle, digo que o livro que a Marielle começou a ler no dia 1 de janeiro foi “Hibisco Roxo”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, ou seja, todos os sonhos e esperanças da Marielle que foram interrompidos no dia 14 de março. 

O filme sobre Marighella baseado em seu livro teve a estreia cancelada. Considera uma censura? 

Nós já tivemos em 2019 o cancelamento do financiamento de filmes por motivo de “filtro”, nas palavras do governo, o que é um eufemismo para censura. Também tivemos a proibição de três curta-metragens que seriam exibidos numa mostra no Rio e tivemos a proibição de uma exposição de charges na Câmara Municipal de Porto Alegre. O filme sobre Marighella foi exibido no começo de 2019 no festival de Berlim, passou por mais de dez países e foi aplaudido de modo entusiasmado em todos eles, mas não conseguiu estrear aqui no Brasil, o que, desgraçadamente, não é uma surpresa. Um livro tem um capítulo exclusivo dedicado à censura, que se chama “A Censura de Volta”, e mostra como ela tem acontecido no campo das artes, da cultura, da universidade e da imprensa, inclusive com proibição de reportagens em jornais e blogs. Acabamos de ter o veto pelo Itamaraty à exibição do filme sobre Chico Buarque no Uruguai. Esse recrudescimento da censura é uma maldição que abate a democracia e a cidadania de tempos em tempos. Posso dizer que o adiamento ou cancelamento da estreia do filme sobre Marighella acontece num contexto de crescimento da censura no país. O deputado Alexandre Frota, quando membro da base política do governo, portanto alguém insuspeito, já havia denunciado que o filme sobre Marighella havia se tornado uma questão de governo para o Estado brasileiro. No livro, eu enumero a quantidade gigantesca de ações de censura pela Justiça em 2018, com decisões do executivo e mesmo da iniciativa privada. 

A que você atribui esse crescimento da censura? 

A ascensão dos governos de direita e extrema direita não é exclusiva do Brasil, ela acontece em todo o mundo. Em 1929, a bolsa de Nova York quebrou e, em seguida, houve um fortalecimento ou a introdução de regimes fascistas e nazistas em muitos lugares do mundo. Agora, tivemos a crise econômico-financeira de 2007 e 2008, seguida de um fortalecimento dos movimentos intolerantes, e o Brasil não fugiu a essa regra, embora o destino tenha sido um pouco mais cruel com a gente. Uma vez no poder, a intolerância precisa de cidadãos que não possam tomar as próprias decisões com fatos lastreados na realidade, quanto menos conhecimento e informações a sociedade tiver, melhor para governantes com espírito autocrático e autoritário. É indispensável para a democracia que haja liberdade de expressão, que é garantida pela Constituição, inclusive a liberdade artística dos povos de conhecerem a sua própria história e ter acesso à informação. 

Como chegou ao título do livro? 

A partir do épico das lutas e do lírico das lágrimas que foi o ano de 2018, quando o país flertou com o apocalipse. Mas o livro se preocupa mais em falar de quem resistiu às trevas do que daquelas que as patrocinaram. Ao abordar o segundo turno das eleições, eu uso a frase da Thereza Nardelli, tatuadora de BH, que consagrou o “Ninguém Solta a Mão de Ninguém”. É um livro indignado, como o nosso tempo exige. É como diz o ditado, atualmente “quem cala consente”. Em março completou-se 50 anos da morte do estudante Edson Luís pela ditadura militar. E tem aquela música que o Milton Nascimento compôs, que diz “quem cala sobre o teu corpo, consente na tua morte”. O ano de 2018 foi duro, recebi muitos relatos de pessoas que disseram que choraram e se emocionaram ao ler o livro. Mas há também momentos leves, porque o Brasil não é só tragédia, é uma tragicomédia. 

Qual a sua perspectiva para os próximos anos? 

Penso que quanto mais ideias obscurantistas que triunfaram em 2018 forem implementadas, pior será para o destino do Brasil. Quanto mais elas forem derrotadas, maior será a chance da gente ver uma luz no final do túnel. 

Serviço. Sempre Um Papo, com Mário Magalhães, nesta segunda (16), às 19h30, na Sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537, centro). Gratuito. 

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