Crônica

Muitíssimo obrigado, João Gilberto!

Pesquisador mineiro, Wander Conceição homenageia o papa da Bossa Nova em artigo especial

Por Wander Conceição
Publicado em 10 de agosto de 2019 | 03:00
 
 
 
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Joãozinho, o almoço está na mesa! O chamado de sua irmã Dadainha ainda ecoa na copa do sobrado da Imobiliária Solar, na praça Barão de Guaicuí, número 106! A mesa está posta aqui em Diamantina, João! E com certeza, há sim uma expectativa, de que você ainda venha para o jantar, assentando-se bem juntinho de todos nós!

Há uma enorme saudade debruçada nas janelas da imobiliária. O seu olhar continua lá, João Gilberto, contemplando um ponto distante, por horas a fio. Trespassa os arcos de madeira do velho Mercado de Tropeiros e se infiltra nas franjas da Serra de São Francisco, ao fundo da paisagem.

O quartinho do fundo onde você dormia foi um pouco modificado, mas consegue reproduzir, tim tim por tim tim, os acordes repetitivos com que você viajava madrugada a dentro, em busca da perfeição. E no espelho do banheiro, onde o treinamento por vezes ocorria, esporadicamente, está refletida a medalha com a imagem de Santa Terezinha, que você beijava antes do ritual dos ensaios.

E quando, à noite, a linda lua cheia torna a serra prateada, as nuvens continuam formando, no céu, as pinturas que você tanto admirou, contemplativo, em silêncio! Um excelente ambiente para você refazer as serenatas que cantou para algumas de suas amigas especiais. Ou quem sabe, você volte a cantar baixinho, próximo à grade da rua Macau do Meio, marcando o compasso da música numa caixinha de fósforos!?

Embora a menina dos “olhos de lagoa” tenha partido para o paraíso no mesmo dia, junto com você, sua poesia, João, ainda desfila no footing pelo piso de capistranas, na área central da cidade. Ali, os seus versos inusitados caminham de braços dados, inebriando os ouvidos de suas mais sinceras amizades.

Passeando pelas ruas da cidade, as irmãs Felício prosseguem, discretamente, ao seu lado, escutando você recitar a poesia de Carlos Drummond de Andrade, destacar a elegância do verso livre e apontar a dissonância inserida na poesia moderna. Elas ainda estão lhe esperando, para prosearem com os membros do Aquarium, um clubinho particular, cujo símbolo era um cavalo-marinho.

Na calçada da Joalheria Pádua, esquina da rua Campos Carvalho, há uma tristeza de fazer dó! Todas as noites seus companheiros continuam lhe esperando, ávidos daquela sua prosa, sempre à frente no tempo! Mas, você não aparece mais João!

O Cine Trianon extinguiu-se, desde a década de 1980. Transformou-se num espaço alternativo para eventos, já faz tempo. Mas lá, no mais profundo de suas instalações, iluminadas pelo “Candelabro Italiano”, ainda há vestígios incríveis dos filmes que você assistiu. Com boa dose de sorte, é possível ouvirem-se compassos intermitentes das famosas trilhas sonoras americanas.

O prédio do Ponto Chic não abriga mais o salão Shangri-La! Mas você está muito próximo do cabeleireiro Zé do Bule agora! Ele, provavelmente, possui novo salão aí no paraíso, onde possa cortar o seu cabelo e lhe presentear com aquela risada folgazã!

O café que você tomava, todas as tardes, em casa de Faustino Andrade, evaporou-se também. Mas não fique triste João Gilberto, no lugar onde moravam Titino e Dona Maria Nazareth, ergueu-se um sobrado muito lindo, onde funciona um conservatório de música. Uma beleza! Você vai adorar. Lá existe um piano de cauda e muitos, muitos violões!

E por falar em piano, recorda-se daquele de quatro pedais, da marca Crow, fabricado em Chicago, que ficava na casa de vó Nazinha, como você carinhosamente a chamava? Suas teclas, as brancas de marfim e as pretas de ébano, ainda funcionam maravilhosamente bem. Com muito pouco esforço é possível ouvir as mãos da filha de Nazinha, a Maria Hanessy, preparando as aulas particulares de música.

Mas a radiola que comportava doze Long Plays, disposta na sala de música daquele comerciante da rua do Rosário, desintegrou-se no tempo. Não resistiu à saudade de quando você escutava aquela vasta discografia do anfitrião, com guarânias, boleros, música caipira, mambos, serenatas etc. Cada composição escutada era experimentada na batida nova do seu violão, um ritmo novo que você estava, meticulosamente, formatando. Recorda-se?

Em 1957, você não devia ter adquirido aquela passagem da OMTA – Organização Mineira de Transportes Aéreos, porque você nos deixou com muita saudade e nunca mais voltou. Seus amigos de Diamantina lhe distinguiram com vários atributos: poeta, filósofo, reflexivo, atencioso, cativante, agradabilíssimo, simpático, reservado, calado, tímido, cavalheiro, sensível, talentoso, hipnotizante, diferenciado, cortês!

Por outro lado, lá no fundo da alma, a nossa gente lhe compreende, João Gilberto! Daqui, você ganhou o mundo e levou a música brasileira para os mais altos píncaros do planeta. Diamantina se ufana de ter acolhido você! Agora você virou uma estrelinha que brilha no céu! Mas seu rastro esplendoroso de luz ficou impregnado nas pedras diamantinas da cidade! Muitíssimo obrigado, Joãozinho!

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