Se há algo que a cada ano não muda são os desafios da vida cotidiana, que, bem sabem os brasileiros, têm sido marcada por fortes turbulências por aqui. São crises econômicas, políticas, além dos conflitos sociais que se arrastam há décadas e que impactam o dia a dia de todos, indo muito além da esfera individual.
Não à toa, esse contexto acaba reverberando também no campo artístico. E, dentro desse bojo, nos palcos, basta lembrar algumas das peças da programação da 46ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, que, se não oferecem soluções, ao menos levam o espectador a refletir – com uma certa leveza – sobre temas contundentes.
Uma delas é “A Comédia dos Defuntos Sem Cova”, com direção de Heloisa Duarte e Jacó do Nascimento e texto de Ângelo Machado. No espetáculo, dois moradores de rua acabam buscando abrigo em um cemitério que, aparentemente, oferece menos perigo do que a via pública. “Eles veem o lugar como uma grande oportunidade para fugir da violência das ruas, da ameaça de serem, por exemplo, queimados, como já aconteceu na vida real”, frisa Heloisa.
Ao mirar o tema da morte, a montagem, observa ela, acaba desmistificando um assunto que ainda é tabu. “Tentamos falar da morte com humor e englobamos também o problema da desigualdade social. A peça acaba brincando com algumas noções e levanta uma pergunta sobre, de fato, quem é que impõe as regras do jogo: os vivos ou os mortos, uma vez que a distribuição de renda é tão desigual a ponto de existir esse disparate de pessoas buscarem residir no cemitério”, diz.
Para Heloisa, a comédia não visa só o entretenimento, mas implica em um ganho de percepção. “Ora, nós estamos falando de pessoas que estão na rua não por ‘malandragem’. Há várias histórias dentro daqueles seres humanos. Então, estamos tratando de uma situação muito séria; levamos uma reflexão para o público, mas buscamos fazer isso com alegria, porque assim é a nossa vida, ela continua”, completa a diretora.
O ator Robson Vieira, em cartaz com “A Que Ponto Chegamos”, também aposta na potência do humor para lidar com situações limites. Entre elas, a decisão do motorista Afonso, interpretado por ele no palco, de tirar o pé do acelerador e deixar o ônibus no qual trabalhava no meio da avenida para seguir a pé rumo a outras possibilidades de vida. Autor do texto da peça junto a Edu Costa, Vieira relata que a motivação para criar esse trabalho foi justamente se apoiar na catarse do riso para propor uma forma de se lidar com a vertigem do presente.
“Nós estamos vivendo uma época de um capitalismo absurdo, em que as pessoas querem ficar ricas da forma mais rápida possível. E por isso os youtubers estão ainda atraindo tanta gente, que acha que vai mudar de vida da noite para o dia”, pontua Vieira.
“A que Ponto Chegamos” teve uma pequena temporada de estreia no ano passado e integra a programação da Campanha pela primeira vez em 2020. “Desempregados: Uma Comédia que Dá Trabalho” também faz sua estreia no evento. O ator, diretor e dramaturgo Cristiano Junqueira comenta que ele, ao lado de Leandro Nassif e Rubens Ramalho, propuseram uma montagem que busca encarar os dramas atuais de milhares de brasileiros.
“Nos reunimos para escrever e fomos tentar eleger um assunto. Logo pensamos nessa situação que o brasileiro tem vivenciado mais nos últimos tempos, que é a falta de dinheiro e de trabalho. Foi assim que chegamos à história de três atores que são amigos, estão desempregados e que conversam com a plateia como se estivessem em uma entrevista de emprego”, conta Junqueira.
Alguns bicos até vão surgindo, mas com algumas especificidades, as quais os três lutam para absorver. “Tem um que acha uma vaga para palhaço, mas ele odeia criança. O outro pensa em vender uma palestra sobre as vantagens e as desvantagens de ser solteiro e casado, mas acha que ninguém vai querer comprar – isso porque vantagens para ser casado não existiriam”, ri o diretor.
Junqueira relata que a peça tem tido boa aceitação – e a prova disso veio da reação do seu próprio pai. “Ele está hoje na mesma condição daqueles personagens e conseguiu rir das situações. Eu acho que a comédia é isso, ela nos faz lidar com as coisas com mais leveza, e até nos faz rir do ridículo em que, às vezes, nos metemos”, completa.
Outro artista que toca em outro aspecto delicado é Thiago Comédia. Ele está apresentando “Como $e Livrar das Dívidas em 12 Hilárias Prestações”, e conta que, no fundo, seu principal objetivo é alertar a plateia. “Nós brincamos muito, pedimos que o público leve uma conta para ser quitada na hora e, claro, dialogamos muito mesmo. O objetivo da peça é justamente falar que dinheiro não é tudo nessa vida”, completa o ator.
“Eu noto que as pessoas estão ali para escutar o que a gente tem a dizer, mas nós também as escutamos muito. É quase uma sessão de terapia”, completa o artista.
Programe-se
“A Comédia dos Defuntos Sem Cova”. Dia 27, às 20h, no Cine Theatro Brasil Vallourec (av. Amazonas, 315, centro). R$ 20
“A que Ponto Chegamos”. Dias 22, 23, 29 e 30, às 20h, no Teatro Sesiminas (Rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia). R$ 14
“Desempregados: Uma Comédia que Dá Trabalho”. Dias 7,8 e 9/2; 6ª e sáb., às 20h, e dom., às 19h. No Teatro Santo Agostinho (rua dos Aimorés, 2679, Lourdes). R$ 20.
“Como $e livrar das Dívidas em 12 Hilárias Prestações”. Dias 27 e 28 e dias 2 e 4/2, às 20h30, no Cine Theatro Brasil Vallourec (av. Amazonas, 315, Centro). Dia 1/2, às 19h e às 21h e dia 2/2, às 19h, no Teatro Pátio Savassi (av. do Contorno, 6061, São Pedro); R$ 20.