Numa madrugada no baixo Leblon, Jards Macalé, 75, reconheceu, graças ao inseparável copo de uísque na mão, quem era o homem que se aproximava. Àquela altura, Vinicius de Moraes (1913-1980) já tinha bebido umas boas doses do “melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado”, como ele apelidara a bebida. Macalé, ainda que preferisse a cerveja, se encontrou com o Poetinha em outro ponto: a música.
Foi assim que os dois compuseram “O Mais que Perfeito”, gravada por Clara Nunes em 1973. A história, embora saborosa, é uma fantasia. O poema de Vinicius que ganhou melodia de Macalé já existia desde 1962 e fora publicado no livro “Para Viver um Grande Amor”, escrito quando o autor era adido consular no Uruguai. Ao ler o poema, Macalé decidiu que se tornaria parceiro do poeta. E conseguiu.
“Vinicius adorava essa nossa música. Eu sempre fui seu admirador, e nos tornamos bons amigos”, conta Macalé, uma das atrações confirmadas na sétima Mostra Cantautores, ao lado de Zélia Duncan, Cátia de França, do cabo-verdiano Tcheka e da angolana Aline Frazão, fazendo jus à promessa dos curadores de esta ser a edição com o maior número de participantes de alcance nacional e internacional.
Na próxima semana, outros nomes serão oficialmente anunciados. O festival – que tem seu foco justamente na composição autoral, despida de outros ornamentos que não a voz acompanhada por um único instrumento –, ocorre na capital entre os dias 3 e 10 de novembro. Idealizado por Luiz Gabriel Lopes e Jennifer Souza, o evento, neste ano, agregou a cantora portuguesa Susana Travassos e o compositor baiano Tiganá Santana a seu time de curadores. Mesmo a distância, Zélia acompanhava a iniciativa que já trouxe a BH shows de Chico César e Xangai, entre outros.
“Venho querendo participar faz tempo. Sei que Minas tem muitos jovens músicos e cantoras incríveis”, elogia. E Zélia, que atualmente está em turnê com Jaques Morelenbaum, vai realçar sua verve de compositora com o lançamento, em 2019, de “um novo álbum pop autoral”.
Lavra. Este vai ser o primeiro trabalho fonográfico da cantora depois das experiências como atriz no musical “Alegria, Alegria”, sobre a tropicália, e na peça “Mordidas”, em que atuou ao lado de Ana Beatriz Nogueira. “Atuar é um mistério maravilhoso, o palco é um ponto em comum com a música, e tudo que eu possa desenvolver a partir dele vai contribuir para a cantora”, avalia. Novata no teatro, ela gravou o primeiro LP em 1990.
Do início como compositora, no entanto, Zélia não se recorda. “Sempre gostei de palavras e por isso me tornei compositora, rastreando poesia, que é o que mais me move na vida. A primeira composição não me lembro, pois certamente nem a gravei”, admite. Já com Macalé aconteceu o oposto. Ele tinha 15 anos quando compôs “Amo Tanto”, sua primeira música. Em 1966, quando tinha 23 anos, ela foi gravada por Nara Leão.
“Não houve um processo especial, a música saiu naturalmente”, diz Macalé. Coincidência ou não, o álbum trazia outra canção de título quase idêntico, assinada por Vinicius de Moraes: “Amei Tanto” (feita com Baden Powell). Cantado por Elizeth Cardoso, Gal Costa e Maria Bethânia, o irreverente músico acumulou, além do Poetinha, parceiros como Wally Salomão, Xico Chaves e Duda Machado. Mas com Capinam conheceu a “glória”.
“É essencial uma boa relação com seu parceiro. É uma espécie de casamento. Lembro que, em 1969, eu e Capinan apresentamos nossa composição ‘Gotham City’ no 4º Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho. Recebemos uma vaia consagradora. Dormimos anônimos e acordamos famosíssimos”, diverte-se Macalé, que em janeiro de 2019 coloca na praça seu primeiro disco de inéditas em 20 anos.
Conexões com o continente africano
A conexão com a África marca a próxima edição da Mostra Cantautores. Manuel Lopes Andrade, conhecido como Tcheka, vem de Cabo Verde para se apresentar na capital mineira. Com cinco discos lançados, ele traz influências da música brasileira no conjunto de sua obra.
“Comecei a escutar música brasileira em 1995, através de um amigo brasileiro que vivia em Portugal, o que me deu a oportunidade de conhecer grandes nomes, como Tim Maia, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Lenine”, exalta. Na apresentação, ele promete contagiar o público com uma mistura de folk, jazz, blues e rock, além de incluir a literatura.
“O repertório foi escolhido para criar um ambiente em que a dinâmica da música esteja sempre a mudar através dos ritmos, da voz e das variações no meu modo próprio de tocar guitarra”, afiança Tcheka.