No velório de Raul Seixas, cerca de cem pessoas invadiram a cerimônia e, enquanto entoavam o refrão de “Sociedade Alternativa”, tentaram raptar o caixão com o corpo do ídolo, para que ele não fosse enterrado. Eles não acreditavam que o autor de “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, “Maluco Beleza”, “Metamorfose Ambulante”, “Tente Outra Vez”, “Ouro de Tolo”, “Canto Para Minha Morte” e tantos outros clássicos da música popular brasileira estivesse realmente morto. Decorridas três décadas da morte de Raul, a adoração em torno do músico só aumentou.
Em 2019, estreou no Rio o musical “Merlin e Arthur ao Som de Raul Seixas: Um Sonho de Liberdade”, que cruza a obra do baiano com a saga do mago Merlin e do rei Arthur. Também estão previstos os lançamentos dos livros “Raul Seixas Por Trás das Canções”, de Carlos Minuano; e “Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida”, de Jotabê Medeiros. Para completar, o álbum “Eu Não Sou Hippie”, registro de show feito em 1974 na cidade mineira de Patrocínio, será reeditado em LP duplo. Ainda sem data para o início das gravações, uma cinebiografia dirigida por Paulo Morelli já foi prometida. O Magazine aproveita a data para relembrar a história de sucessos de Raul.
“Como Vovó Já Dizia” (1974) – Raul Seixas
A figura da avó é tida, nas culturas orientais, como guardiã do conhecimento, mas recebeu de Raul Seixas um olhar rebelde, diferente da admiração demonstrada por Clara Nunes na música “Coisa da Antiga”, de Nei Lopes e Wilson Moreira. Raul, ao contrário, é irônico ao demonstrar, de maneira codificada, a argúcia de comportamentos considerados transgressores, como, por exemplo, o uso de drogas ilícitas. Nessa ladainha, ele reproduz um ensinamento da avó: “a banana é vitamina que engorda e faz crescer”, mas também rebate: “a formiga só trabalha porque não sabe cantar”.
“Medo da Chuva” (1974) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Romântica em sua estrutura e na letra, que não se esquiva do melodrama, a música capta o momento de ruptura entre um casal, e as metáforas são claras: enquanto as pedras representam o conforto e o costume da segurança estéril e imóvel, a chuva surge como a renovação da vida em contínuo movimento. Como na mitologia grega, onde a sua imagem é uma das temíveis e poderosas, a chuva ganha o sentido da esperança: “Pois a chuva voltando pra terra/ Traz coisas do ar”, diz Raul, no auge dos anos 70.
“Tente Outra Vez” (1975) – Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta
Essa balada, lançada no disco “Novo Aeon”, sublinha a força de continuidade da vida. Foi com versos embebidos numa melodia de teor religioso que Raul, cuja canção é, ainda hoje, muitas vezes ligada ao universo da autoajuda, criou uma das músicas mais espirituosas de seu repertório, em todos os sentidos. Clássica, ela foi regravada por Sandra de Sá, Barão Vermelho, Chitãozinho & Xororó, Fábio Jr., Zezé di Camargo & Luciano e muitos outros.
“Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” (1976) – Raul Seixas e Paulo Coelho
A longa saga descrita pela música faz um périplo pela história da humanidade e, claro, não poderia deixar passar um de seus fatos mais traumáticos: a Inquisição promovida pela Igreja Católica, que assassinava na fogueira pessoas que eram tidas como bruxas por se desviarem do comportamento padrão da época. Uma das vítimas mais conhecidas das atrocidades foi a revolucionária francesa Joana D’Arc. Raul destaca essa prática no verso: “Eu vi as bruxas pegando fogo pra pagarem seus pecados”.
“Bruxa Amarela” (1976) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Feita especialmente para Rita Lee, a música foi gravada pela então vocalista da banda Tutti Frutti, no disco lançado pela banda em 1976. Com a habitual verve mística, os autores abrem as portas para esse mundo fantástico, em versos como: “Duas horas da manhã eu abro a minha janela/ E vejo a bruxa cruzando a grande lua amarela/ E vou dormir quase em paz”. Em 1988, em seu penúltimo disco de carreira, Raul Seixas registrou uma nova versão da música, modificando o título para “Check-up” e alterando versos pontuais.
“Aluga-se” (1980) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
O humor ácido e sarcástico de Raul aparece nesse rock. Embora a música já fosse um sucesso na interpretação do autor, ela tornou-se ainda mais popular uma década depois, quando os Titãs a regravaram em ritmo ainda mais indignado. O fato só comprova que o Brasil, aos trancos e barrancos, sempre volta aos mesmos problemas. Nesta canção, Raul, assumidamente influenciado pela cultura norte-americana, propõe uma solução para o país tupiniquim: alugar o terreno para deixar os gringos explorarem.
“Rock das ‘Aranha’” (1980) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
Raul Seixas, que sempre gostou de mesclar o rock a ritmos brasileiros e idolatrava tanto Elvis Presley quanto Luiz Gonzaga, também entrou na onda do duplo sentido, bem à sua maneira. Criou com o parceiro Cláudio Roberto a história da cobra que observa a briga entre duas aranhas, numa óbvia alusão aos apelidos dados aos órgãos sexuais no Brasil. Para completar, ainda fazia troça do feminismo e assumia o próprio machismo. “Vem cá mulher, deixa de manha/ Minha cobra quer comer sua aranha”, cantava.
“O Carimbador Maluco” (1983) – Raul Seixas
Após o sucesso de iniciativas como a “Arca de Noé” e “Pirlimpimpim”, a Globo voltou a investir no formato infantil em 1983, ao criar o programa “Plunct, Plact, Zuuum”. À época já relegado ao ostracismo pela indústria fonográfica, Raul viu no convite a oportunidade de voltar às paradas de sucesso, embora fazer músicas para crianças não fosse exatamente a sua praia. Inspirado por sua filha Vivian, à época com dois anos de idade, Raul criou canção e personagem que ficaram associados a ele até o fim da vida.
“Cowboy Fora Da Lei” (1987) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
Depois de lançar vivas e efetivamente fundar os preceitos de uma “Sociedade Alternativa”, além de pregar ensinamentos cósmicos e de rebeldia, Raul Seixas lançou, em 1987, as suas considerações sobre assumir um cargo público. “Cowboy Fora Da Lei”, parceria com Cláudio Roberto, debocha, logo no início, da forma arcaica e coronelista que fundou e ainda permanece em grande parte da política nacional. “Mamãe não quero ser prefeito/ Pode ser que eu seja eleito/ E alguém pode querer me assassinar”.