Com riso sórdido e olhar fanático, Paulo Autran (1922-2007), na pele do político conservador Porfírio Diaz, encara a lente de Glauber Rocha (1939-1981) e brada: “Aprenderão! Aprenderão! Dominarei esta terra. Botarei estas histéricas tradições em ordem. Pela força! Pelo amor da força! Pela harmonia universal dos infernos, chegaremos a uma civilização!”. A cena é parte do complexo filme “Terra em Transe” (1967), polêmico e controverso como tudo o que permeou a vida de Glauber. 

O longa-metragem foi uma das referências para a criação de “Transe”, eleita pela curadoria do 20º Cenas Curtas do Galpão Cine Horto como a melhor montagem, feito que rendeu um prêmio de R$ 10 mil para ampliar a versão e transformá-la em peça no próximo ano.

“Temos muito material de improvisação e questões discutidas no processo. Precisamos pensar agora no contexto de um espetáculo, que é diferente da cena. Também nos interessa a ideia de manifesto, trabalhamos muito com a ordem da performance. Então, temos a intenção de tentar desconstruir o parâmetro do ‘espetacular’ e trazer outras camadas, pensando nas linguagens contemporâneas”, explica Rodrigo Antero, que protagoniza “Transe” ao lado de Elba Rocha. 

A empreitada começou a nascer a partir de uma residência da Maldita Cia. de Investigação Teatral, a convite da Secretaria de Direitos Humanos do Estado, que incentivou pessoas formadas em teatro, dança e artes visuais a desenvolverem um projeto em conjunto, tendo como ponto de partida o período da ditadura militar no país. 

As visitas ao prédio onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em Belo Horizonte, lugar em que ocorriam as torturas do regime, forneceram informações essenciais. Emely Vieira Salazar, psicóloga que foi presa política entre 1970 e 1971, atua na cena com um depoimento registrado em vídeo. “A ideia é entrevistar outras presas políticas para a versão ampliada da montagem”, declara Antero. 

Tendo como ponto central a ditadura militar, a narrativa estende suas reflexões para “os corpos marginalizados no Brasil”. “Como um indivíduo negro e LGBTQI+ acho muito simbólico abordar esses assuntos hoje, a sociedade está muito difícil para a gente. Entre os autores sobre os quais nos debruçamos, há alguns que dizem que a ditadura ainda não acabou, a anistia não aconteceu de fato”, sublinha o ator. 

Para Antero, a ditadura é um “ponto nevrálgico” da nossa conjuntura política, por se tratar de “uma pauta que nunca foi, realmente, posta em discussão pela sociedade”. Dentro de “um período cultural bem fragilizado”, ele celebra iniciativas como o Festival Cenas Curtas. “É uma possibilidade de a gente continuar produzindo arte neste país”, exalta. 

Mulher

Foi a partir do “desejo de abordar o lugar da mulher na família” que Clara Trocoli concebeu “Represa”, com o auxílio luxuoso da diretora e dramaturga Lara Duarte. “É um tema que não é muito falado. A gente discute muito o papel da mulher na sociedade, mas os abusos e os traumas que a mulher enfrenta dentro da família são bastante silenciados, é algo chato para se falar em casa, parece que é mais importante manter a imagem da família feliz”, avalia a jovem intérprete baiana. 

Em “Represa”, tudo o que está contido é posto para fora. A sinopse da cena usa apenas as definições do dicionário, que parecem suficientes para provar o seu impacto: “substantivo feminino; barreira para represar água corrente; sentimento intenso precariamente reprimido e a ponto de extravasar”. Embora parta das memórias afetivas de Clara, a cena “não é um diário”, como ela esclarece. 

Graças ao voto popular, a montagem volta a estar em cartaz nesta sexta (4), ao lado de “A Farsa do Bom Juiz”, “Eu Só, com Verso” e “Re-tratos”. Nascida em Salvador e morando há dois anos no Rio, Clara se diz “uma grande fã” da atriz mineira Grace Passô.

Serviço

Mais Votadas do 20º Cenas Curtas, hoje, às 20h, no Galpão Cine Horto (rua Pitangui, 3.613). De R$ 10 (meia) a R$ 20.