Um professor é convidado pelo aluno francês para tomar café e conversar um pouco sobre o Brasil. Estamos em Paris, no ano de 1977. Aos poucos, a conversa se torna tensa. O aluno, mudo, resolve pagar a conta, deixa uma gorjeta e abandona o local impressionado com o relato do professor. “Para ir da gravidade ao terror político bastaram duas xícaras de café e uns biscoitos”, descreve Milton Hatoum, 66, nas primeiras páginas de “A Noite da Espera” (2017).
É por esse romance que o amazonense acaba de ser indicado como um dos dez finalistas do prêmio Oceanos, um dos mais importantes de literatura em língua portuguesa. A obra integra a trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, cujo segundo volume sai até abril do ano que vem.
Habituado a colecionar premiações e considerado um dos maiores autores vivos do país, Hatoum é atração do Fórum das Letras nessa sexta-feira, em Ouro Preto, em mesa que debate o tema “Identidade e território literário”. Ao Magazine, o escritor fala sobre o momento político do país, os riscos à democracia e o êxito conquistado na literatura.
O romance “A Noite da Espera” tem como pano de fundo a ditadura militar no Brasil. O fato de ele ter sido lançado no ano passado já é um algum prenúncio do que está por vir?
Na verdade, a primeira ideia desse romance é mais antiga, vem de 1980, quando eu morava na Europa, só que não consegui desenvolver na época. Então passei pelo “Cinzas do Norte” (2005), que é um primo nortista de “A Noite da Espera”, e pelo “Órfãos do Eldorado” (2008). Quando enfim comecei a trabalhar mais detidamente nesse romance, entendi que ele seria uma trilogia, porque tem mais de 800 páginas, só um volume não seria viável. Críticos e leitores têm dito que ele pode ser compreendido como uma leitura atual de tudo que está acontecendo, mas isso não foi pensado por mim, eu estaria mentindo se o dissesse. Quando comecei, em 2008, o Brasil estava em outra toada. Mas o autoritarismo é cíclico, ele sempre volta. Se eu não percebi, o romance percebeu. A ficção é mais visionária que o autor.
O momento do país interferiu nos dois volumes que ainda estão por vir?
Não muito, porque eu já tinha escrito praticamente tudo. Agora o que estou fazendo é uma revisão. Aliás, li com perplexidade o manuscrito do próximo volume e, de fato, ele está ainda mais conectado com o nosso momento. Ainda não tem título. Eu acabo de receber a boa notícia de que sou finalista do prêmio Oceanos. A gente nunca espera nada, também não escreve para ganhar prêmio, mas o livro fica mais conhecido e isso é importante.
Na primeira entrevista de Jair Bolsonaro como presidente eleito ele declarou que “o período militar não foi ditadura e que a população começa a entender isso”. Como o senhor recebe essa declaração?
É uma declaração cínica que faz parte do inventário de falsidade e falsificações, de mentiras que ele vem falando há muito tempo. Do ponto de vista ético e moral, não se pode esperar nada de quem já elogiou a tortura, a violência, falou coisas terríveis contra minorias, mulheres e negros. Ele vai negar a ditadura, mas existem testemunhas, pessoas que estão aí que foram perseguidas e torturadas. A maior parte do eleitorado não se sensibilizou com isso, o que é muito preocupante para o Brasil e o mundo.
Na opinião do senhor, o que levou o país à eleição de Bolsonaro?
Não há uma única causa, são fobias misturadas. Em 2018, depois de três governos e meio do PT, eu fui chamado de comunista. O PT que foi aliado dos bancos, do grande capital, que deu vários subsídios para empresas. Chamar o PT de comunista é desonestidade intelectual ou uma ingenuidade gritante. O PT não tem nada de comunismo ou Venezuela. Aliás, o Bolsonaro elogiou o (Hugo) Chávez em 1994 numa entrevista em setembro para o “Estadão”, disse que era a esperança para a América Latina.
O senhor teme pelo fim da nossa democracia?
Não quero acreditar nisso, mas, a essa altura da minha vida, não duvido de mais nada, e olha que nem sou tão velho assim. Acho que pode haver uma degradação muito grande dos Poderes e das instituições. Nesse sentido, o Judiciário tem que ser firme para evitar. A imprensa e a população têm que se manifestar. Se houver ameaças à democracia, as pessoas têm que ir para a rua, protestar. Com meu espírito liberal, achei uma coisa incrível os liberais apoiarem Bolsonaro. A direita portuguesa, jornalistas e políticos, o criticaram de forma contundente. Brinquei com um amigo português que tenho inveja da direita portuguesa, olha a que ponto chegamos. No Brasil, o Machado de Assis já tinha sacado isso, com o Brás Cubas (protagonista do romance de 1881). Ele é um falso liberal que usa um discurso de fachada, mas na verdade é escravagista e corrupto. E ele está vivo até hoje. É o pessoal que votou no (João) Amoêdo e no João Doria, que, aliás, é uma vergonha. Um político oportunista e despreparado. Quem mora na cidade de São Paulo sabe.
Qual o maior perigo que esse governo representa?
Não respeitar a Constituição e tomar medidas arbitrárias. Não sei se é um governo fascista, mas há uma mentalidade fascista que pode descambar para práticas fascistas, como de invasão a universidades e censura. Algo que já aconteceu recentemente. Isso é aterrorizante.
Pela renovação das esquerdas, Milton Hatoum elogia modelo português
Perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) quando cursava Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP) na década de 70, Milton Hatoum se mostra preocupado com a onda autoritária e conservadora no país e analisa o papel da esquerda na oposição.
Qual a responsabilidade do PT e da esquerda no nosso atual cenário político?
Acho que o PT errou muito, sobretudo o governo Dilma, que praticou políticas desastrosas de economia, meio ambiente e indigenista. Nenhum antropólogo ou ambientalista concorda com o que foi feito. Além da gastança desastrosa, com subsídios para setores da indústria e gastos com políticas públicas em um momento que não permitia esse tipo de aposta.
Qual deve ser o papel do PT e da esquerda na oposição?
Acho que o (Fernando) Haddad e o Ciro (Gomes) saem destacados como líderes da esquerda. Não sei o que o Lula, da prisão, está pensando em relação ao futuro do partido. Não sou petista de carteirinha, poderia votar tranquilamente no Ciro. Aliás, nesse segundo turno, eu votaria até no Daciolo e depois iria ao manicômio. Mas acho que o PT precisa de uma renovação pra já, tem que ser imediata, senão vai perder espaço. O modelo para uma esquerda moderna é a “geringonça” (apelido dado ao governo que assumiu o poder em 2015) de Portugal, com um grande acordo de várias tendências à esquerda, da mais radical à de centro, com um programa comum em que se abre mão de certos itens. Com a globalização na economia, o país não pode virar as costas para a reforma fiscal, a Previdência tem que ser reformada, a questão é como será feito. A crítica contra países como Venezuela e Nicarágua precisa ser explícita. Para a minha geração é inadmissível apoiar esse caudilhismo bruto e violento do (Nicolás) Maduro e do (Daniel) Ortega.
Qual é o papel que a literatura pode exercer nesse momento?
Não posso reclamar porque os meus livros já venderam mais de 300 mil exemplares, o que no Brasil não é pouco. Mas o escritor pode pouco, o alcance da palavra é pequeno. A transformação da literatura é lenta. Ela transforma o leitor ao longo do tempo. É diferente da força de artistas populares como Daniela Mercury, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil e Camila Pitanga, que apoiaram o Haddad.
Como é a sua relação com Minas Gerais?
É profunda. Considero Guimarães Rosa o maior escritor da nossa língua. Admiro Pedro Nava, Murilo Mendes, Ana Martins Marques. Drummond é um dos maiores poetas do país, e inclusive vai servir de epígrafe para o meu próximo livro. “Claro Enigma” (1951) é uma obra muito poderosa, que me fascina.
Qual a principal diferença entre o romance e o conto?
O conto exige brevidade, tensão, a personagem pode ser caracterizada em poucas páginas. O romance é como um jogo de bilhar, uma bola bate na outra até que a terceira caia. Ele dá espaço para digressões e comentários, possui um outro tempo.