Ele diz: “Vai ser jogador de futebol”. Ela responde: “Não, vai ser bailarina. Já comprei até a sapatilha”. E completa. “Panelinha, geladeira, ferrinho de passar... Olha a cozinha da Barbie!”. Ele continua. “O danado já tá cheio de namoradinha na escola”. As frases que iniciam o espetáculo “Rosa Choque” ressoam a violência naturalizada de um cultura machista ainda presente e arraigada nas sociedades contemporâneas. O costume de ouvi-las e repeti-las cotidianamente leva a violência, sutil ou extrema, à invisibilidade. Mas ditas no palco, esta tribuna de debate e reflexão, como gosta de dizer a diretora do espetáculo, Cida Falabella, as falas se potencializam e colocam o público a refletir sobre as construções abusivas e desrespeitosas ao ser feminino. “Rosa Choque” estreia hoje, no Galpão Cine Horto, e faz temporada até 17 de maio.

A situação inicial do espetáculo parte de uma inversão inusitada de papéis: um homem é a vítima de estupro cometido por uma mulher. Ao recorrer às instância de apoio, o personagem encontra desamparo. A inversão traz o choque desestabilizador, e a violência ao homem lança luz ao que se habituou ser uma realidade na vida de inúmeras mulheres.

O absurdo faz pensar que os avanços foram grandiosos, mas que a construção social que subjuga o lugar da mulher na sociedade está ancorada em uma raiz ainda fecunda. E é a partir desta percepção que instâncias sensíveis, como o teatro, se fazem necessárias para falar de um tema tão pungente. Foi a partir de outro trabalho, visto nos palcos, que a dupla de atores Cris Moreira e Guilherme Théo decidiu fazer o espetáculo. Ao assistir a "Contrações", do Grupo 3 de Teatro, que aborda as explorações no ambiente de trabalho, nasceu nos atores o desejo de reverberar um assunto caro e relevante. “A gente não pensa sobre alguns temas que estão postos, ao menos, a partir de determinados ângulos. A violência à mulher tem se tornado banal e é preciso falar disso”, comenta Guilherme.

A truculência corporal trazida pela situação extrema que é um estupro torna-se meio para abordar as demais violências acometidas, como a opressão, o preconceito e a construção inferiorizada da mulher. Para Cris, o estupro está na ordem do não representável. “Qualquer coisa que fizéssemos, seria frágil e pequeno. E ficamos pensando como fazer para que as pessoas reflitam que essa brutalidade não é natural, que as diferenças biológicas e físicas não validam esse tipo de coisa. A inversão de papéis vem para nos ajudar a causar esse estranhamento e esse choque na forma de pensar o lugar em que colocamos o homem e a mulher”, conta a atriz.

Entre cenas fictícias que se referem a notícias de jornais, a apresentação de dados históricos e homenagens a figuras femininas que marcaram a luta das mulheres, como Frida Kahlo, Simone de Beauvoir, Malala Yousafzai, salta à dramaturgia a potência dos depoimentos dos atores, uma marca imprimida por Cida Falabella. A autorreflexão a partir das situações vividas na pele levou os atores à pergunta: Estamos imunes a sermos machistas? “O machismo está em diversos lugares, na linguagem, na religião, na mídia. E a violência tem nascimento nesse padrão de encarar o que é o ser homem e o ser mulher. A forma como construímos essas imagens permite às mulheres serem violentadas, física e psicologicamente, simplesmente por serem mulheres”, reflete Guilherme.

Para Cris, falar sobre o feminismo traz algumas dificuldades. “Sempre vai aparecer alguém para falar que estamos oprimindo os homens. Mas a questão não está em uma oposição dos gêneros, mas nesta cultura machista, preconceituosa e que mata. A gente quer discutir essa cultura que coloca o homem em um lugar privilegiado”. Como um convite à reflexão, o espetáculo pergunta até onde escolhemos estar no lugar onde estamos. “Eu não escolhi ser mulher, mas posso escolher avançar nisso ou ficar”, completa a atriz.