O nome que consta na certidão de nascimento é Marco Aurélio da Silva Mazzola, mas todos o conhecem por Marco Mazzola, ou simplesmente Mazzola. É impossível falar da música popular brasileira nas últimas cinco décadas sem mencionar esse carioca de 72 anos, que teve seu primeiro contato com a música no coral de uma escola católica, quando tinha 9 anos.
Responsável por produzir discos de estrelas como Raul Seixas, Elis Regina, Chico Buarque, Gilberto Gil, Belchior, Gal Costa, Milton Nascimento, Ivete Sangalo e Rita Lee - só para citar alguns - , Mazzola ajudou a criar álbuns clássicos e gravou seu nome na história da nossa produção fonográfica.
História é o que não falta na edição atualizada de “Ouvindo Estrelas”, autobiografia recém-lançada pelo Ubook. Quinze anos depois da primeira versão, o livro ganha o olhar sobre episódios recentes, bastidores da quase catástrofe na Jornada Mundial da Juventude, em 2013, no Rio de Janeiro, cuja produção musical da trilha sonora e do evento principal do Papa Francisco ficou a cargo de Mazzola, e relatos sobre as revoluções tecnológicas no mercado da música.
São 50 anos de carreira espalhadas em centenas de páginas. Conhecido como “Fazedor de estrelas” e “Ouvido de ouro”, Marco Mazzola compartilha sua trajetória marcada por uma espécie de mantra do produtor: “O sucesso é fruto da ousadia”.
Por que lançar agora uma versão atualizada da sua autobiografia?
A primeira edição, de 2007, se esgotou, e eu não quis renovar o contrato com a antiga editora, a Planeta. A música estava entrando numa fase mais digital, resolvi esperar um pouco, reunir outras histórias da minha vida. Fiz diversos projetos desde então, ganhei prêmios e há um tempo pensei que estava na hora de fazer uma nova edição com novos temas, falando das plataformas de streaming. Isso eu não tinha falado antes, claro. De lá pra cá, o mercado brasileiro de música digital se tornou um dos maiores do mundo. Isso é uma revolução.
O que temos de novo nesta edição atualizada?
Tem uma grande história da Jornada Mundial da Juventude, por exemplo, que aconteceu em julho de 2013 no Rio de Janeiro. Fui escolhido para fazer a produção do evento e tive diversos problemas com a Igreja. Eu queria fazer uma revolução, achava a música evangélica muito mais bem acabada. Uma coisa que me deixou muito triste foi que, depois de dois meses de trabalho, tudo que eu fiz não tinha sido aprovado pelo papa Bento XVI. Tomei um choque. Eu não refaço nada, falei com eles. Depois de 15 dias, teve a mudança, e o papa Francisco assumiu. Ele quis escutar a música do festival e achou incrível. Este foi só um estresse. No dia do evento foi uma loucura, testamos o som até os últimos segundos, tivemos problema, pensei que não ia dar nada certo. O áudio não chegava, a imagem não chegava ao telão, nada dava certo. Tive até que conversar sério com Deus, olhando aquele mar de gente em Copacabana. Cara, eu não sei te explicar, mas, se existe um milagre, aconteceu ali. Está tudo no livro. Tem umas histórias que acabaram ficando esquecidas. Ganhei Grammy com Jota Quest, Toquinho e Yamandu Costa, teve a pandemia, e falo também das coisas de hoje, me pergunto o que virá. Não tenho bola de cristal, mas hoje tem NFT, coisas assim inusitadas. O mundo da música está sempre em revolução.
Como e quando foi seu primeiro contato com a música?
Vim de uma origem muito pobre, muitas vezes não tinha o que comer. Minha mãe era uma pessoa muito inteligente, apesar de não ter instrução. Ela era muito religiosa, e eu fazia de tudo para ajudar em casa. Até que ela conseguiu que eu fosse estudar num colégio de padre, o Salesianos, e lá tinha um grupo vocal, o Pequenos Cantores da Guanabara. Era um sucesso estrondoso. Eu tinha uns 10 anos, fiz um teste e passei, acertei todas as notas. Acabei virando solista do grupo. Viajamos para a inauguração de Brasília, tem histórias ótimas sobre isso no livro. Mas chegou a adolescência, a voz mudou, e saí do coral. E agora? Eu amava música, continuei pesquisando. Fui a uma fábrica de amplificadores e sugeri que eles fizessem o equipamento para guitarra e baixo também. Pedi se podia ser vendedor, e eles aceitaram. Eu tinha 16 anos e morava no Jacarezinho. Os amplificadores começaram a fazer sucesso. O grupo The Pops, banda instrumental que fazia muito sucesso no Rio, usava, e fiz uma mesinha de gravação para eles. Ali eu já era produtor, mesmo sem saber. Fomos gravar na Musidisc, e um cara me chamou para trabalhar no estúdio. Rapaz, eu virava dia e noite lá, foi onde tudo começou, no final dos anos 1960.
Um dos primeiros artistas que você produziu foi o Raul Seixas. A estreia solo dele foi com você como produtor.
Isso, “Krig-Ha, Bandolo!”, primeiro disco solo do Raul, lançado em julho de 1973. O Raul foi levar o Sérgio Sampaio na gravadora Philips, onde eu trabalhava. Ele estava de terno, todo arrumado. O Menescal e o André Midani também estavam por lá, e eu, garoto, buscando oportunidades. Perguntei ao Raul o que ele fazia. Ele era produtor da CBS e acabou me mostrando “Ouro de Tolo”. Quando eu ouvi aquilo… “Essa música é tua?”, perguntei. Ele disse que sim e me contou a vida dele toda. Perguntei se tinha mais músicas, aí eu me assustei. Ele tirou a gravata, o paletó e cantou “Let Me Sing, Let Me Sing”. “Essa é tua também?” Fiquei de boca aberta. Chamei o Menescal. “Menesca, esse cara é incrível, tenho que contratá-lo”. “Se quiser, pode, mas você vai tomar conta dele”, o Menescal falou. Na época, o Raul ainda era Raulzito, mas com esse nome falei que ele não ia a lugar algum. Ficou Raul Seixas.
Você acabou produzindo todos os grandes discos do Raul nos anos 1970, exceto “O Dia em que a Terra Parou”, e vocês viraram bons amigos. No livro, como você fala dessa relação?
O Raul aparece de uma forma bastante carinhosa. Eu sabia tudo que acontecia na vida dele, trocava ideia, dava conselhos. Passei por situações constrangedoras com ele também, como uma vez em que o ajudei a se livrar de uma dívida de droga. Eu tinha uma ligação muito forte com ele. A última vez que o vi – falar sobre isso até me dói o coração – foi nos anos 1980, no Rio. Ele estava em frente ao Parque Lage com o violão na mão, esperando o ônibus. O Raul Seixas esperando um ônibus no Rio de Janeiro! Dei a volta no quarteirão para pegá-lo, mas ele tinha sumido. Perdi de vista. Depois teve uma vez que ele me ligou, queria conversar comigo. “Olha, Mazzolêra, estou doente, queria muito falar contigo”. Esse assunto morreu, e a gente nunca mais se viu.
Na segunda metade dos anos 1970, você produziu discos que entraram para a história da música brasileira. “Falso Brilhante”, da Elis, “Gita” e Novo Aeon”, do Raul, “Refazenda” e “Realce”, do Gil, “Alucinação” e “Coração Selvagem”, do Belchior, para citar alguns. Essa foi sua grande fase? Tem algum período que você guarda com mais carinho?
Ah, tem que ter, né? Essa foi uma grande fase, mas também tem a Ivete Sangalo, uma coisa mais recente, que me deu muita alegria. Ela ainda estava na Banda Eva e meti na cabeça dela que deveria ser artista solo. Fizemos a música “Coleção”, tirando ela um pouco do axé, a gravadora ficou puta comigo. A Ivete dá um depoimento no livro, me carrega no colo. Cada período da minha vida eu escolhi o que ia fazer, e os desafios foram enormes. Eu não me vendo por dinheiro, o sucesso é fruto da ousadia. Eu preciso conversar com os artistas, fazer um trabalho de base, participar. Esses discos que você citou venderam mais de 1 milhão de cópias nos anos seguintes ao lançamento. Na década de 1970, a liberdade era muito grande, isso era muito legal.
Você produziu discos de artistas dos mais diversos estilos. Esse trânsito que você tem se deve a quê?
A qualidade que eu imprimia nos discos, qualidade sonora e depois as ideias. Como eu sempre digo, o sucesso é fruto da ousadia. Eu sempre quis ser bom e bem-conceituado no que eu faço, estudei muito para isso. Sempre quis dar pulos altos, o Midani me convidou para ser vice-presidente da Warner, que ele estava trazendo para o Brasil em 1976. Eu tinha só 29 anos. Sempre fui atrás do que era bom, do que era novo. Com “Realce”, do Gil, eu busquei um som americano com uma banda americana, no auge da disco music. Lutei muito para ser reconhecido aqui, no Brasil, eu sempre falei que produtor tinha que assinar contracapa de disco. A coisa foi melhorando, começaram a surgir grandes produtores, o mercado abriu a cabeça, reconheceu. Era importante fazer o que eu acreditava também.
Como quando você contratou o Belchior?
Sim, mas a gravadora pirou: “Vai contratar um cara narigudo, feio pra c***, que tem voz estranha, canta anasalado?” (risos) Mas o cara era foda, tinha uma música melhor que a outra. Ele me mostrou “Apenas um Rapaz Latino-Americano” no nosso primeiro encontro. Acabamos lançando “Alucinação” (1976), um discaço, pela Phonogram, de onde saí pouco tempo depois. “Alucinação” depois estourou, falei para o Belchior que lá não gostavam dele e o levei comigo para a Warner. Lançamos “Coração Selvagem” em 1977. Ele também virou um grande amigo, a gente se encontrava sempre.
Para o produtor, o que é mais difícil: administrar o ego dos artistas ou lidar com os executivos das gravadoras, que muitas vezes vêm de outros ramos e não entendem nada de música?
O mais difícil era administrar os executivos. Eles estavam ali no comando para gerar lucro, alguns tinham vindo do mercado de pneus, por exemplo. Tinha presidente de gravadora dono de padaria. A minha briga era com os executivos, muitos não tinham uma visão bacana. Quanto aos artistas e ao ego deles, isso aí é um namoro, você tem que conquistar o artista. Mas sabe quem tem mais ego? As pessoas que trabalham com o artista, os caras que vivem em volta dele. Porque com o artista você senta, se entende, tenta fazer assim ou assado, mas tem assessores, empresários… Muitas vezes, esses intermediários atrapalham muito.
Você acabou passando por várias gravadoras.
Fui adquirindo experiência. No início dos anos 1980, ingressei na Ariola e levei Milton Nascimento e Chico Buarque para lá, mesclando com artistas como Geraldo Azevedo, Arrigo Barnabé e Tetê Espíndola. Depois teve a Sony, para onde levei Ney Matogrosso, RPM, João Bosco… Fiz um casting maravilhoso. Foi aí que apareceu o Paul Simon, que estava gravando com o Milton. O Paul tinha lançado “Graceland”, estava fazendo um sucesso danado e queria que eu mostrasse grupos brasileiros. O primeiro lugar que eu o levei foi no Olodum. Ele enlouqueceu e me convidou para produzir o disco dele, o “The Rythm of the Saints”. Em 1986, eu falei: nunca mais vou trabalhar para gravadora.
Até que em 1996 você fundou sua própria gravadora, a MZA Music.
Sim, mas antes continuei produzindo também, fazia Ney Matogrosso, Milton. Na MZA, parti pra cima de artistas que eram desconhecidos ou estavam marginalizados, entre eles Zeca Baleiro, Chico César, e fui montando a empresa aos poucos. Graças a Deus, ela é muito respeitada. Agora, nos dedicamos muito a eventos, estou começando a pensar no Rio Montreaux Jazz Festival, como vou montar o line-up.
Em que você está trabalhando agora?
Faço muita consultoria, continuo fazendo um disco ou outro, faço um EP, produzo uma faixa. Não tenho mais aquela rotina de ser produtor de um disco inteiro. Cheguei a fazer quatro discos de uma só vez, eu nem dormia. O corpo e a cabeça pedem um descanso.
Com que cabeça você acompanha os avanços tecnológicos, a mudança na forma de produzir e consumir música? Você é um homem do estúdio, que começou gravando com quatro canais, e hoje um adolescente consegue gravar um disco pelo GarageBand. ]
Eu quero me meter em tudo que seja novo. Vou dialogar com NFTs, com tudo que virá. Acompanho o mercado de perto. Sobre os home studios, não dá para achar que eles são a solução. Acho que isso pode ser um cartão de visita, você grava ali para mostrar às pessoas, fazer umas demos, mas aí o cara grava, coloca na plataforma, e não acontece nada. Para fazer seu trabalho acontecer dentro da internet, você também precisa de dinheiro. Qual é o trabalho das gravadoras hoje em dia? Pescar na internet o que tem mais visualizações, o que está bombando, o que é bom, e pegar esse artista. Eu acho que no home studio os equipamentos não são bons, a qualidade dos microfones não é boa. É preciso investir. Tem muita gente gravando discos, colocando na internet e investindo nas plataformas, mas, se não é bom, não adianta nada. Você está perdendo dinheiro. Se você não pega o ouvinte na hora, ele escapa.
Ouvindo Estrelas
A recém-lançada edição atualizada de “Ouvindo Estrelas” (Editora Ubook, R$ 79,90) ganhou versão impressa, digital e audiobook, na voz de Lúcio Mauro Filho, prefácio de Milton Nascimento narrado por Maria Gadú e depoimentos de artistas como Zeca Baleiro, Chico César e Kledir.