Entrevista

Maria Rita lança EP, desfaz amarras e reafirma papel de operária da música

Cantora estreia como compositora em ‘Desse Jeito’, que reúne seis faixas, reverencia o samba e reflete a fé e a espiritualidade da artista

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 19 de agosto de 2022 | 12:01
 
 
 
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Maria Rita lança, nesta sexta-feira (19), o EP “Desse Jeito”, seu primeiro trabalho desde “Amor e Música”, disco lançado em 2018. São seis faixas inéditas e a novidade é que duas delas são de autoria da cantora: “Por Vezes”, um dueto com Thiaguinho, e “Canção Para Erê Dela”, com Teresa Cristina nos vocais. “Desse Jeito” também celebra os 20 anos de carreira de Maria Rita, mas vai além: é, segundo a artista, o novo momento de uma “operária da música enquanto mãe, mulher, cantora e empresária”. “O balanço maior da pandemia foi trazer essa necessidade de um outro olhar para mim”, ela diz.

Esse novo olhar tem tudo a ver com a entrada de corpo e alma, há três anos, no candomblé e um profundo mergulho para entender sua fé e sua espiritualidade. O samba está em “Desse Jeito” não só para marcar o ritmo das canções, mas, sobretudo, como afirmação da importância histórica, estética, social e artística de um gênero que diz tanto sobre as belezas e as mazelas do Brasil.

Ao lançar o EP, Maria Rita quer se livrar de uma porção de amarras. Ela se sentia travada, engessada, como se tivesse 70 anos de idade e 50 de carreira. Daqui a 20 dias, em 9 de setembro, ela festeja seus 45 anos. E quer fazer muita coisa nova. “Desse Jeito”, mesmo nome de uma das faixas do EP, lançada também em videoclipe nesta sexta, é libertação e abertura de novos caminhos: “Ele é menos sobre os últimos 20 anos e mais sobre os próximos 20, 40”.

Em entrevista a O TEMPO, Maria Rita também fala sobre o Brasil de hoje, um país fragmentado, triste, agressivo e conservador da pior maneira possível”.

O material de divulgação de “Desse Jeito” fala em sua quarentena “reclusa e reflexiva”. Houve um momento em que você despertou para esse novo disco ou percebeu que estava na hora de lançar um álbum de inéditas depois de “Amor e Música”?

Muita coisa aconteceu desde o lançamento de 2018. Eu já vinha numa conversa com a indústria, com os empresários e a gravadora de que eu estava me sentindo meio travada, engessada, como se eu tivesse 50 anos de carreira e 70 de vida, sabe? Todo mundo fazendo um monte de coisas diferentes e eu fico amarrada em contrato que só me permite gravar um disco de, no mínimo, 10 faixas? Entre um trabalho e outro eu estava buscando parceiros que também entendessem essa minha inquietação Hoje, o artista lança uma música a cada uma, duas semanas, uma por mês, um novo clipe, e não falar essa linguagem me coloca numa situação atrasada. Com a pandemia tudo desandou, os diversos projetos que atenderiam minha necessidade, essa minha ânsia de fazer coisas diferentes ao mesmo tempo foram por água abaixo. A Som Livre entendeu meu anseio. A ideia era produzir um EP de quatro a seis faixas e ir lançando a conta-gotas, em doses homeopáticas, mas a decisão da gravadora foi lançar o EP inteiro. Acabei pensando na identidade visual, no nome, na ordem das faixas.

E você produz todas as faixas.

Eu produzo todas as faixas dos meus discos há bastante tempo. Os Grammy que tenho aqui em casa são como produtora. Então o que acontece agora é isso que eu estava falando: são parcerias que entendem as minhas inquietações, meus parceiros de trabalho do dia a dia, sabe? São pessoas que entendem as minhas inquietações, que entendem que tenho muita coisa para fazer ainda e que me taxarem e me colocarem na caixinha de grande intérprete talvez seja limitante, entendeu? É nesse momento que eu me encontro. A pandemia veio para acionar ainda mais essa inquietação.

“Desse Jeito” é um disco de samba, muito influenciado pelo Candomblé, pela sua espiritualidade, pela fé , pela cultura do povo negro. Em que medida esse EP dialoga e reflete o Brasil? Porque me parece que, musicalmente, não tem jeito melhor de falar do Brasil do que com o samba. 

Concordo. Não é a única ou exclusiva maneira de falar do Brasil, mas é uma das melhores, talvez a melhor. A questão da minha fé, da minha religiosidade, da minha espiritualidade é como você bem observou. Tudo isso são descobertas que venho tendo há alguns anos, desde 2017, mais ou menos. Eu sempre entendi a existência do Candomblé. Quando eu morava fora do Brasil (em Nova York, nos Estados Unidos), cursei Comunicação Social e Estudos Latino-americanos, entrei nesse universo da América Latina, vi santeria, vi candomblé de Cuba, vi essa questão da religiosidade de matriz africana com uma força muito grande. Como te falei, de 2015 para cá isso foi chegando com mais força para mim, não fui em busca, sabe? E acabou chegando inclusive através da música e muito fortemente através do samba. O samba tem o batuque, tem a ancestralidade. Uma vez eu estava conversando com o doutor Silvio e ele falou: ‘Maria, terreiros de candomblé e terreiros de samba são a mesma coisa’. São as mesmas características, têm a mesma língua, o preparo de uma festa de candomblé lembra o preparo de um desfile de Carnaval, por exemplo.  Tenho sido recebida pelo samba com tanto amor, com tanta parceria, com tanto aconchego. Talvez tenha sido uma consequência espiritual eu ter encontrado o candomblé. Esse entendimento de fé, de comunhão com a natureza, da não solidão, da não solitude, sempre foram muito fortes, mas eu não sabia localizar de onde vinha, o que era. Quando me vi, estava estudando, lendo, buscando entender, pesquisando a história da África pré-escravidão, entendeu? Eu estava mergulhando de uma forma que me salva diariamente e vem me salvando desde 2018, 2019.

Maria, quando você olha para esse Brasil que acaba de receber seu disco, qual país você vê? Qual é esse Brasil de 2022? 

Difícil essa pergunta. É um país fragmentado, triste, agressivo, angustiado pelos “ismos”, machismo, racismo, que são terríveis e imortais. Vejo um país conservador da pior maneira possível, está muito difícil lembrar de um Brasil feliz. Nós tivemos um lugar feliz durante pouco tempo, e foi recente, né? Eu nunca imaginei que fosse ler histórias de jornalistas e políticos que se auto-exilaram por real e verdadeiro medo da morte. O que é ser brasileiro hoje em dia? É andar de mão dada com a possibilidade da morte diária por uma crença religiosa, pela cor da sua pele, por você ser mulher, por você ter uma orientação sexual que dizem ser errada. Quem disse que é errada? É muito exaustivo.

Eu te pergunto isso porque quando a gente pensa num Brasil feliz o papel da música popular é fundamental, e “Desse Jeito” é uma reverência ao samba. 

Sem dúvida. O samba sempre foi reverenciado por mim e sempre será, especialmente depois desse colo que me deram lá em 2007, quando eu lanço “Samba Meu”. O samba é uma expressão cultural de um povo marginalizado, de um povo que resiste, que busca nas pequenas coisas as alegrias. O samba não é só um churrasco entre os amigos no fim de semana. É um modo de vida, uma linguagem, uma imagem, uma história, um monte de outras coisas. Tem uma memória por trás. O samba já foi ilegal, um homem que fosse visto na rua andando com um pandeiro ia preso. De onde vem o samba? Por que os artistas do samba são marginalizados? Por que a realidade da indústria fonográfica junto ao samba é tão radicalmente diferente daquela vista por artistas de outro gênero? Eu sou uma mulher branca, venho de uma linhagem de mulheres brancas que abraçam o samba, que vivem o samba com honra e amor, mas e as outras? Por que a gente não está aqui reverenciando Leci Brandão? A resposta é simples, velho. A resposta é feia e horrorosa, mas é simples. Nesse EP tem uma música, “Correria”, que acho que traduz muito bem isso. É do Nego Álvaro. Tem uma linha no samba que fala da ‘alforria que meu patrão não queria, mas foi obrigado a dar’. Eu liguei e perguntei se ele queria que eu trocasse para ‘seu patrão’, em vez de ‘meu patrão’. Porque eu sou branca. Ele falou ‘não, eu quero que você cante assim porque é você que está gravando, você falando isso vai ter um impacto diferente’. O papel do artista, enquanto produtor de cultura, produtor de arte, produtor de música, é fazer pensar, dar uma cutucada, gerar debates.

Quero falar agora um pouco sobre suas duas composições, “Canção Para Erê Dela” e “Por Vezes”. O fato de elas estarem no EP faz parte de um processo de amadurecimento, de você se sentir mais à vontade com a caneta na mão, de sair dessa caixinha de intérprete, como você disse no início da entrevista? 

É muito mais simples que isso! Eu só queria me exibir, pura vaidade! (risos) ‘Erê’ é de antes da pandemia, talvez do finalzinho da liberdade pré-isolamento. Ou já foi durante o isolamento? Agora você me pegou… O que me lembro é que acordei com uma melodia muito forte na cabeça. Ela estava tão forte, tão firme que já estava resolvida. Eu falei ‘caraca, de quem é essa música?’. Mandei um áudio para o Pretinho da Serrinha. ‘Essa música é sua’, ele falou. Desconfiei dele e chamei o Fred Camacho. ‘Não é de ninguém, é sua’, ele falou. O Fred há anos fala para compormos juntos, que eu tenho uma musicalidade muito forte, que estou sempre palpitando nas letras, nas melodias dele. Passado algum tempo de pandemia, todo mundo negativado, nos reunimos e terminamos a música e uma terceira parte da letra. Já ‘Por Vezes’ foi diferente, veio a letra todinha. Eu estava em São Paulo, procurei meus amigos Magno e Maurílio. Eu estava hospedada na casa do Magno, ele pegou a letra e fez uma melodia em cima. Naquela noite a gente se encontrou com o irmão dele, o Maurílio e finalizamos a melodia já com harmonia e ordem. São duas canções muito fiéis ao momento que estou vivendo, especialmente com a minha relação com com a minha espiritualidade.

E tem outros sambas aí na gaveta? 

Cara, tem algumas letras aparecendo, mas como venho falando, não posso dizer que sou uma compositora que acorda de manhã e pensa para compor, escrever, tem essa essa rotina de criação para exercitar o ofício. Eu ainda estou numa explosão esporádica, acontece alguma coisa aqui, aparece um pedaço de letra ali, aí vou e escrevo, mas as letras estão aí no mundo. Vamos ver o que o universo vai fazer com isso.

“Desse Jeito” também celebra seus 20 anos de carreira, porque em 2002 você participou dos discos de Milton Nascimento e de Chico Pinheiro - no ano seguinte, você lança o elogiadíssimo “Maria Rita”. Agora, o EP festeja essa efeméride, marca sua estreia como compositora e está sendo lançado num período de pandemia, que por si só já é significativo. O que “Desse Jeito” representa para você? Ele carrega todo um simbolismo especial?

Carrega um simbolismo de olhar para a frente. A capa é justamente isso. Eu quero olhar para a frente, é o que estou fazendo. O balanço maior da pandemia foi me trazer essa necessidade de um outro olhar para mim enquanto operária da música. Então eu falei que queria um rosto que ninguém nunca viu, uma luz que ninguém nunca viu, um jeito que ninguém nunca viu, um cabelo que só viram em show. E aí fez sentido dar o nome de “Desse Jeito”, que é o nome de uma das músicas. Eu queria marcar uma coisa olhando pra frente. “Desse Jeito” é o primeiro passo de um novo momento, de uma nova fase da minha vida enquanto mãe, mulher, cantora, empresária. Por isso falo em ‘operária da música’ para englobar o rolê todo de viver de música no Brasil. O EP é menos sobre os últimos 20 anos e mais sobre os próximos 20, 40 anos, porque vou morrer ‘véia’, louca e todo mundo vai ter que me engolir.

E quando você fala dos próximos 20 anos, imagino que deve ser muito libertador pensar nisso, mas ao mesmo tempo desafiador.

Certamente desafiador porque a gente não tem como saber o dia de amanhã, a gente só pode saber as nossas nossas verdades. Tenho os meus valores e as minhas verdades, sei o que quero nesse momento e eu vou correr atrás para que isso aconteça. Mas, de fato, é libertador saber que eu tenho essa gana, saber que não estou cansada.

É preciso ter coragem também, né?

É preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Exatamente. Obrigado por essa leitura porque é exatamente isso, ainda mais sendo mulher nesse país. Então vamos bater nessa tecla porque tem um bonde atrás de mim, entendeu? Tem um bonde de outras mulheres corajosas, inspiradoras e que também precisam de inspiração, porque não dá para ser sozinho na vida, não. Eu tenho um amigo que fala um negócio maravilhoso: ‘sozinho nem corno a gente é’.

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