O escritor Maurício Lara conta que já há algum tempo "“gestava” a ideia de escrever sobre dois velhos conversando. "Depois, avancei para serem três em torno de uma mesa", rememora. A pandemia do novo coronavírus acabou fornecendo-lhe a circunstância. "Com o isolamento dos personagens e o meu próprio, com meus 67 anos e a minha mania de tentar refletir sobre a vida", lembra o também jornalista, que acaba de lançar, virtualmente, "Na Mesa", seu oitavo romance - que, vale dizer, foi escrito em 30 dias, como num jorro criativo.
 
Nele, temos três homens na faixa dos 70 anos, Custódio, Pepe e Vicente. Amigos de adolescência, se reencontram neste período de quarentena. Em torno de uma mesa, colocam em repasse suas trajetórias, lembram o amigo que já partiu e falam sobre temas diversos, alguns mais intrincados, como o regime militar, outros mais amenos, como o gosto por viagens. Em alguns momento, o autor traça um paralelo do trio com os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. O insight, aliás, conta ele, "surgiu em um desses milagres da criação". "Meus personagens seriam pessoas comuns e me ocorreu que eles poderiam carregar características dos heróis criados por Dumas. Reli o livro e fiz a analogia. O quarto mosqueteiro – Dartagnam – existiu na minha história, mas não chegou à velhice", salienta. Confira, a seguir, um pouco mais da entrevista com Lara.
 
Qual o impacto da pandemia em sua vida? Que sentimentos te invadiram com o advento do novo coronavírus e como tem sido a sua quarentena? É pesado pensar que uma pessoa com, mais de 60 anos, tem como alternativa esperar a vacina ou ‘pagar para ver’, o que significa desde ficar assintomático até ir parar em um respirador, com grandes chances de morrer. Saio pouco, mas, felizmente, posso trabalhar e produzir em casa. Um desafio é não ficar atormentado com as restrições do isolamento - e não fiquei. Para escrever um romance em exatos 30 dias é preciso ter a cabeça e o peito disponíveis.
 
Os personagens do livro são septuagenários, logo, viveram o período da ditadura no Brasíl, o que aparece no desenrolar das memórias... A menção a essa "página infeliz da nossa história" foi influenciada pelos movimentos que, nos dias atuais, pedem a volta do regime militar? A menção às lembranças da ditadura tem tudo a ver com o momento assustador que vivemos, como se estivéssemos diante de coisas horrorosas que deveriam estar bem enterradas no passado, mas estão presentes até em relações familiares, para nossa tristeza.
 
Em um ponto da narrativa, um dos personagens lembra que há pessoas, hoje, que refutam a ditadura. Bem, a gente sabe que este é um fenômeno que vem acontecendo mundo afora, com gente duvidando, por exemplo, do holocausto. O fato de essa referência estar no livro teria a ver com uma indignação que advém em sua mente? Veja, eu lembro daquele tempo. Em 1964, tinha 11 anos e acompanhei aquele “a família que reza unida permanece unida” diante da televisão da família. Fui crescendo e compreendendo o mal que tudo aquilo causava. Eu vi. É quase inacreditável ver hoje pessoas com argumentos do tipo: quem estava trabalhando não teve problema nenhum. Do mesmo modo que é quase inacreditável ver gente homenageando a cloroquina. Como disse Chico Buarque, ‘não sou eu quem repete essa história, é a história que adora uma repetição’.
 
A certa hora, fala-se de "ser velho para ficar mudando os conceitos". Para além dos personagens, o que pensa a respeito? Sempre há tempo de mudar? Penso que a gente não muda na essência. Tive câncer há 16 anos e continuei sendo a mesma pessoa depois de curado, com as mesmas qualidades e defeitos. Mas um pai de santo me disse que eu ganhara “tempero espiritual” com aquela vivência radical. Essa foi a mudança significativa. Então, a essência permanece, mas há muito a ganhar, sempre. Se não cuidar, muito a perder também.
 
 A velhice e o isolamento do idoso no núcleo familiar também aparecem na narrativa... O que pensa de envelhecer? E, em particular, no Brasil... A expressão ‘melhor idade’ certamente foi criada por um adulto, não por um velho. Não existe isso de melhor idade, é conversa para boi dormir. É preciso encarar o envelhecimento como inevitável, mas também como uma oportunidade de resistir e absorver as limitações que a idade traz. Não é a melhor idade, mas podemos fazer com que não seja a pior. Como disse a filha de um amigo: “Gosto, mas não prefiro”. Envelhecer no Brasil parece pior, porque a vida de trabalho não livra o velho da dependência e pode implicar até a perda da autonomia.
 
Qual a importância da amizade na vida do ser humano? A importância da amizade é a mesma do amor, do afeto. Vem tudo no dote de sentimentos que o ser humano recebe ao nascer. Se vamos ser capazes de exercitar a amizade, o amor e o afeto é outra história. Infeliz daquele que não enxerga o outro e, por isso, não pode desfrutar do sentimento que vai além do egoísmo, do só ver a si próprio, sem dar conta de dar e, pior, sem dar conta de receber de fato o que o amigo oferece.
 
Você procura praticar a leveza, como é sugerido por um dos personagens, em determinada passagem? Eu procuro praticar a leveza como objetivo, porque não vejo outra forma de envelhecer aproveitando o que a vida tem de bom. É o único caminho bom. Como está no livro: “Com leveza, você vai ouvir algazarra de pássaros, alarido de crianças, barulho da brisa, cheiro de mato... Vai identificar um sorriso encantador, vai enxergar olhos expressivos, vai reparar na pele macia. Se você endurecer, vai pisar na flor, vai chutar o cachorro, vai berrar com a criança, vai atormentar a mulher.”
 
Em outro trecho, notamos que os amigos falam sobre viajar quando tudo isso acabar. Quais os seus planos, os planos do Maurício Lara, para quando tudo isso findar? Pode até ter sido um ato falho (risos). Vontade de ter liberdade, de andar sem máscara, de abraçar. Nesta semana, precisei ir a São Paulo, em inevitável viagem de trabalho. Fui e voltei. Dirigi por 1.200 quilômetros, descansando um pouco em postos de abastecimento, com medo da maçaneta de um quarto de hotel (risos). Então, a pandemia, no mínimo, despoja a gente, fazendo-nos querer pouco. Acho que eu desejava mesmo era me ligar nesse ensinamento de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: “O dia vindo depois da noite - esse é o motivo dos passarinhos”
 
Acha que sairemos mudados dessa experiência? Ou retomaremos a nossa vida jogando o que vivemos nestes dias tão difíceis para o limbo da memória? Eu gostaria muito que saíssemos melhores dessa crise, mas não tenho muita expectativa. Nem deveríamos precisar de tanto sofrimento para mudar, para avançar como seres humanos. A vida já traz os ensinamentos com naturalidade. Desta vez é uma dor coletiva, mundial, de que não podemos escapar, a qual não dá para escamotear. Mas todos os dias temos dores a enfrentar, todos os dias temos a chance de aprender, mas teimamos em não aprender. Não basta decorar a lição, é preciso entender, sentir.