Ao contrário de “Game of Thrones”, em que saber o final foi o que motivou os fãs até o último episódio, em “Chernobyl”, saber como termina é o que menos importa. Os fatos já são conhecidos. A minissérie da Sky Original, que está sendo exibida no Brasil pela HBO, reconstrói um dos momentos mais trágicos da história: o maior acidente nuclear do planeta, ocorrido em 1986, quando o reator 4 da usina de Chernobyl explodiu.
Com roteiro impecável e elenco de poucas estrelas, mas muito talento, a série é brutal, porém absolutamente necessária. Prova que a televisão é espaço de entretenimento e de fuga da realidade, mas também deve exercer um papel de mantenedora da memória e provocadora de reflexão. Não espere momentos leves. Assistir a “Chernobyl” é uma experiência angustiante, daquelas que dão náusea, vontade de quebrar a tela, gritar com os personagens.
O clima de medo da vigilância constante que predominava na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, à época comandada por Mikhail Gorbatchov, é traduzido com maestria. A série mostra que, enquanto na maioria dos países do Ocidente falar o que se pensa é um direito inato (hoje, cada vez mais com ressalvas), na União Soviética a situação era outra. Até as maiores autoridades eram seguidas, seus telefonemas eram ouvidos, seus quartos eram grampeados.
A única voz que ressoava era a oficial. Tanto que, nos primeiros dias após o desastre de 26 de abril de 1986, na Ucrânia, a reação do Partido Comunista, da KGB e dos principais líderes foi conter o vazamento – não de radiação, mas de informações. Levar o Exército para cercar a região e cortar as linhas telefônicas foi a primeira providência para que a grande potência socialista não parecesse enfraquecida aos olhos do mundo. Na reunião que decidiu esse curso de ação, todos aplaudem.
O espectador, sabendo que a região é hoje uma zona morta e deve permanecer inabitável ainda por milhares de anos, assiste impotente àquelas pessoas se divertindo com a nuvem de poeira radioativa como se fosse neve, crianças indo à escola sem nenhuma preocupação, bombeiros, mineiros, enfermeiros, engenheiros, todos no meio daquele inferno sem ter a medida das consequências.
O resto do mundo só começou a desconfiar de que algo estava errado quando índices anormais de radioatividade começaram a ser detectados na Suécia, na Dinamarca, na Noruega e na Finlândia, a milhares de quilômetros dali.
Numa cena revoltante, o vice-presidente do Conselho de Ministros Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), gestor da crise, conta ao professor Valery Legasov (o espetacular Jared Harris, de “Mad Men” e “The Terror”) que na Alemanha proibiram as crianças de brincar ao ar livre – enquanto os dois olham da janela as crianças de Prypiat, cidade construída para abrigar os trabalhadores da usina, voltarem da escola caminhando descontraidamente.
Fica claro quem é o verdadeiro vilão da minissérie. Não é a fatalidade nem a incompetência humana. É a cegueira ideológica. A lenta revelação dessa cultura de mentiras e omissões, escancarada na cara do mundo, foi a primeira grande marretada no regime, que culminou com a simbólica derrubada do Muro de Berlim, em 1991, cinco anos depois do acidente em Chernobyl.
Personagens
Além de retratar a história com precisão, inclusive na reconstrução dos locais, o roteiro de “Chernobyl” emociona ao entrelaçar os dramas de pessoas reais. Saber que eles viveram tudo aquilo, como o bombeiro que foi para a usina achando que era só um incêndio no telhado ou a médica preocupada porque o hospital não tinha pílulas de iodo, aumenta a agonia.
Mas nenhuma história impacta mais do que a de Lyudmilla Ignatenko, vivida pela cantora e atriz irlandesa Jessie Buckley. Ela é a mulher do bombeiro que a série escolhe pinçar para os holofotes. Sua história é contada por ela mesma no livro “Vozes de Tchernóbil: A História Oral do Desastre Nuclear”, de Svetlana Alexijevich.
Grávida, ela ignora as poucas recomendações médicas – lembre-se de que o mundo sabia muito pouco sobre radiação e menos ainda sobre o acidente que estava acontecendo – e acompanha o marido em seu leito de hospital, enquanto ele literalmente derrete até morrer. As imagens dos efeitos da radiação não são para os fracos, mas são didáticas e inesquecíveis. A vida de Lyudmilla comoveu tanto o criador e roteirista da série, Craig Mazin, que ele fez questão de contar o drama na TV.
O próprio Valery Legasov, cujo suicídio é a primeira cena da minissérie, é outro que veio da vida real, e o ator Jarred Harris brilha ao nos levar da estupefação à revolta e, daí, ao desespero. Já a física nuclear Ulana Khomyuk (Emily Watson) não é uma personagem real, mas um combinado de várias pessoas que tiveram papel fundamental na investigação do desastre, e representa o cenário médico-científico da União Soviética naquele tempo. Esse era um dos raros campos de conhecimento em que as mulheres tinham alguma proeminência por lá.