Evento

Mostra Elas ressalta a potência da sororidade em experiências artísticas

Julia Medeiros vai conversar com 17 mulheres que atuam em diversas linguagens, e que criaram obras sobre mulheres reais

Por Patrícia Cassese
Publicado em 15 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Para a escritora Tatiana Salem Levy, a Mostra Elas, que tem início nesta terça-feira, no ambiente virtual, se junta a outras que, paulatinamente, vêm se esforçando para desconstruir a máxima de que as mulheres são as principais rivais delas mesmas. “Esse projeto aponta justamente o contrário. Ou seja, que as mulheres podem dar as mãos umas às outras e trabalhar junto. Em vez de uma querer diminuir ou invejar a outra, como muitos ainda acreditam, podem potencializá-la – e crescer com ela”, diz a autora do recente e impactante livro “Vista Chinesa” (Todavia), no qual um episódio real de uma das maiores violências possíveis de serem cometidas contra uma mulher – o estupro – é ficcionalizado.  

Prevista para ser encerrada no dia 25, a Mostra Elas se traduz em uma série de conversas pensada pela escritora, dramaturga e atriz Júlia Medeiros, que vai reunir 17 expoentes femininos que atuam em variadas linguagens – literatura, cinema, teatro, artes visuais e documentário –, mas com um denominador comum: todas se debruçaram sobre a vida, estudos ou vivências de outras representantes do sexo feminino. Tatiana, por exemplo, levou para a esfera da ficção, em seu citado livro, uma experiência vivida em 2015 por uma amiga, a diretora (de pérolas como a série “Segunda Chamada”, do Globoplay) Joana Jabace, vítima de um estupro ocorrido em um dos cartões-postais do Rio de Janeiro, a Vista Chinesa citada no título.   

Em seu canal no YouTube (youtube.com/juliamedeiros), Júlia vai conversar sobre as motivações e os processos das obras, com a preocupação também de jogar luz sobre a biografia das personagens retratadas pelas convidadas e a sua relevância histórica – ou sobre a recorrência de situações que, mesmo partindo de exemplos específicos, ainda são cometidas contra tantas outras mulheres mundo afora.   

Júlia conta que o projeto nasceu da observação da sua própria reação ao contato com algumas obras de mulheres que narravam a vida de outras. Muitas vezes, com direito a lágrimas. “Choro que continha muita tristeza, pois também tem um conteúdo de denúncia, de olhar para a nossa trajetória de mulher ao longo da história e aquilo a que a gente foi submetida – muitas vezes de forma violenta, mas muitas vezes também sem perceber”.  

Mas ela ressalta que também passou a detectar uma sensação muito forte quando acabava de se relacionar com essas obras, quase catártica. “No ano passado, eu estava pensando o que poderia propor (em termos de projeto) para a Lei Aldir Blanc (de fomento cultural durante a pandemia). E teve um momento que me ocorreu que o que estava mexendo tanto comigo era o fato de terem sido mulheres falando de mulheres. Pensei: ‘Cara, eu quero conversar sobre’. Não é que eu tivesse definido uma teoria naquele momento, algo de dizer: ‘Ah, quando mulheres escrevem sobre mulheres é diferente’, e tal. Mas queria conversar com quem criou as obras, entender como isso atravessou essas mulheres, se elas também sentiram um encontro com a biografia das outras, com a obra de outras. Se ficaram tão remexidas quanto fiquei”. Ou seja, as lágrimas que brotaram ao ter contato com as obras, na verdade, já traduziam um incômodo sentido pelo corpo físico antes mesmo de elaboração pelo território da mente. 

A mentora lembra que na literatura, por exemplo, grandes personagens femininas – como Julieta, Capitu e Isolda (“que, inclusive, são mulheres nas quais a gente às vezes se espelha”) – são criações de homens. “Claro, a arte permite isso, ela é fundada nessa liberdade, de a gente realmente poder imaginar as coisas e dar a nossa visão. Mas me toquei de que eu nunca tinha visto ou lido esses trabalhos dessa forma, pensando que essas mulheres eram frutos do que os homens achavam que elas eram – por melhores artistas e autores que fossem”. Nesse exercício de elaboração e de análise, Júlia começou a vislumbrar um veio a ser explorado e debatido. “E claro que tem um lugar político também, além desse mais sutil, mais íntimo. Porque é óbvio que é inaceitável que nós, mulheres, tenhamos tão poucos registros por outras mulheres. Porque, na verdade, a visão de feminino que chegava para a gente sempre veio com o atravessamento do gênero masculino, e isso numa cultura essencialmente patriarcal”. 

Noção de uma rede de mulheres 

Tatiana Salem Levy pontua que a Mostra Elas traduz a ideia de uma rede de mulheres. “Ao contrário daquele discurso com o qual a gente cresce (da rivalidade feminina), as mulheres sempre se uniram muito, seja naquele hábito das confidências feitas na cozinha ou irmãs que se unem contra uma violência familiar, por exemplo”. Júlia reconhece que muitos trabalhos incríveis acabaram ficando fora dessa primeira edição, mas pontua que a semente está plantada, abrindo espaço para outras. “Na verdade, tenho a impressão de que se abriu um portal. Ficou uma lista de ideias e desejos na manga, mas estou muito feliz com esse formato deste ano, porque acho que essa costura da programação já está dizendo alguma coisa. Como se a mostra pudesse ser, talvez, outra obra. Estou muito feliz também por essas mulheres terem aceitado participar. São todas muito potentes. Mesmo trabalhando com linguagens diferentes, todas estão interessadas em provocar, questionar o que está posto. E entendo também que oportunidades como essa possibilitam um mergulho mais aprofundado em pautas nas quais apenas a ponta do iceberg nos chega. O movimento de conversar sobre elas, descer a camadas mais profundas, gera reflexões importantes. E acho que vai ser bem bonito o público poder estar junto”. 

Hoje, os trabalhos têm início com Júlia conversando com a dramaturga, diretora e atriz Renata Carvalho, que investiga sua ancestralidade trans, ou “transcestralidade”, no monólogo “Manifesto Transpofágico”. Em cena, ela lança um manifesto sobre o nascimento desses corpos, mostrando a construção social e a criminalização que os permeiam, do imaginário à concretude. Já a artista visual Renata Felinto parte da biografia de três mulheres negras que foram importantes líderes religiosas e comunitárias no Cariri – todas ligadas pelo esquecimento – para criar a videoperformance “Trindade”. 

Programação Mostra Elas 

De 15 a 25 de junho – de terça a sexta-feira - 20h* - gratuito – online, no canal: youtube.com/juliamedeiros 

* A conversa com Branca Vianna e Tatiana Salem Levy acontecerá excepcionalmente às 19h, devido ao fuso horário de Portugal, onde vive Tatiana.

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