Dezoito anos atrás, mês de dezembro: um jovem policial é morto em uma favela e tem início uma perseguição policial em busca do culpado. Durante catorze dias, o Aglomerado Santa Lúcia, na região Centro-Sul da capital, ficou ocupado por forças policiais. Qual o resultado da operação? A criação de um museu.
A constatação é forçosa – o período foi traumático para os moradores –, mas ajuda a explicitar como um contexto de opressão serviu de munição para moradores ocuparem um espaço e contarem suas memórias em busca pela paz.
Assim nascia o Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos, o Muquifu, um dos museus mais celebrados por especialistas brasileiros atualmente. O centro cultural é um dos principais representantes da chamada museologia social, que propõe um diálogo aproximado com a sociedade.
Numa comunidade que precisou brigar para ter acesso a água, energia elétrica e saneamento em décadas passadas, lidar com situações de pânico era apenas uma dose a mais para engrossar aquele caldo no ano 2000.
Recém-chegado na favela, o padre Mauro Luiz da Silva compreendeu a latência do momento. Ajudou moradores a organizar passeatas pela paz e em discussões sobre direitos humanos. Os eventos foram ganhando corpo, reunindo objetos e documentos dos moradores. Em 20 de novembro de 2012, não por acaso o Dia da Consciência Negra, o espaço ganhou endereço físico e foi batizado como museu. O nascimento coincidiu com a finalização dos estudos sobre museologia que o padre realizou na Itália.
Impossível falar da comunidade sem abordar questões da negritude. Elas aparecem, por exemplo, na formação das lideranças comunitárias. “Aqui tivemos catorze mulheres negras que ocuparam posição de destaque, treze eram domésticas e uma virou doutora”, informa o padre. “Isso tem a ver com a essência do museu”, completa.
Como o Muquifu funciona em imóvel anexo à Igreja Maria Estrela do Amanhã (o padre faz questão de frisar que o museu é laico), a força dessas manifestações foi tão imperiosa que entrou igreja adentro. Uma emocionante pintura que levou três anos para ficar pronta ocupa 110 m² no interior da igreja e insere as catorze mulheres negras em cenas de passagens bíblicas. O trabalho foi realizado pelos artistas Cleiton Gos e Marcial Ávila.
A obra dialoga frontalmente com as vivências de resistência e luta pela cidadania comuns aos vizinhos. “O museu nasceu para contar a história desses moradores”, avalia o padre, que atualmente atende em outra paróquia, mas continua curador do museu.
É andando de braços dados com a comunidade que o Muquifu consegue feitos que deixam os museólogos comovidos, como quando um objeto que estava no museu, doado pela guarda de moçambique 13 de Maio, do bairro Concórdia, foi emprestado a integrantes de um congado que estava abandonado.
“A guarda ia morrer se não fizéssemos alguma coisa, e emprestei um tambor que estava aqui. Isso é romper completamente com a função do museu, que é de preservar objetos, e essas peças dentro do museu morrem, perdem a função. Emprestar esse tambor é museologia social”, explica o curador.
O local também faz o caminho inverso e pega objetos emprestados com a comunidade para deixar em exposição. Assim foi montada a instalação atual sobre folia de reis, no segundo piso.
A potência dessas narrativas são o que mais interessa ao Muquifu. “Aqui, os objetos são secundários. As histórias que eles contam é que são importantes. Então, a grande pegada não é contar a história dos outros, é revisitar sua própria história. Os outros museus deveriam aprender isso, pois os moradores se reconhecem aqui”, provoca o museólogo.
A opinião é compartilhada pelo coordenador educativo Alexsandro Tigger. “O Muquifu faz o link entre a comunidade e o chamado asfalto, ficamos na fronteira”, reflete.
A proximidade com o cenário de precariedade social da região aparece até mesmo na estrutura física do museu, que exibe paredes sem reboco e piso em cimento grosso. Objetos e documentos de moradores preenchem a parte expositiva, em forma de coleções. “Foi intencional criarmos um museu que queria romper um pouco com a estratégia dos museus tradicionais de valorizar certas histórias e esquecer outras”, contextualiza o padre.
Uma instalação do arquiteto Sylvio de Podestá reproduz os minúsculos e claustrofóbicos quartos ainda hoje destinados às empregadas domésticas em apartamentos de classe média.
Aliás, a figura da doméstica é protagonista por ali. Uma das coleções é composta por cacarecos dados pelas patroas. “Quando queima ou estraga algo, a patroa doa para a empregada. Então, essa curadoria já estava pronta”, diz o especialista.
Mesmo com toda essa exuberância social e cultural, o museu não possui nenhum apoio financeiro do Estado nem da prefeitura, segundo o padre Mauro.
Visite o Muquifu
O Muquifu fica na rua Santo Antônio do Monte, 708, Vila Estrela (Aglomerado Santa Lúcia). Funcionamento: das 13h às 17h (de terça a sexta). Para outros horários, é possível agendar pelo telefone (31) 98798-7516.
Levantamento nacional revela que maioria da população considera os museus espaços elitizados e sem novidade
Rio de Janeiro. Os elogios entusiasmados ao Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), situado numa comunidade periférica de Belo Horizonte, foram verbalizados na cerimônia de lançamento de uma pesquisa nacional sobre museus, realizada no último dia 22. O estudo foi promovido pelo Oi Futuro, em parceria com a Consumoteca.
O raio X teve como objetivo captar a percepção do público sobre museus brasileiros. O estudo aponta tendências e desafios para repensar a gestão museológica no país. E o espaço belo-horizontino está encabeçando um movimento que propõe novos entendimentos sobre a função de um museu e sua relação com os visitantes.
Entre as 600 pessoas entrevistadas, um dos dados que mais chamaram atenção foi a constatação de que 50% dos participantes acham museus lugares elitizados, monótonos e sem novidade.
“Imploro que vocês não comecem a matéria dizendo que brasileiro detesta museu”, conclamou o gerente executivo de cultura do Oi Futuro, Roberto Guimarães, aos jornalistas presentes.
Para o antropólogo Michel Alcoforado, da Consumoteca, que participou do trabalho, os museus apresentam pouca surpresa aos entrevistados. “Eles demonstraram que têm uma relação de check-list com o museu. Foi uma vez e pronto”, avalia.
O que os pesquisadores concluíram é que museus que possuem aparatos tecnológicos são mais atraentes ao público. Mas não se trata de entulhar um museu de computadores. “Tecnologia não aponta novidade, mas é a relação que aponta”, contextualiza Mário Chagas, diretor do Museu da República, do Rio de Janeiro, presente no evento.
A proximidade com o contexto da comunidade local é algo fundamental para esse novo entendimento de um museu, segundo avaliam os pesquisadores. “O museu precisa atrair o público, o visitante precisa se identificar”, avalia Guimarães.
Mas como ampliar esse grau de atratividade? “O acervo é o coração do museu, mas novos jogos nessa relação precisam ser criados”, sugere o antropólogo. “O museu precisa preservar, além de objetos, suas narrativas”, completa.
Esses espaços estão pecando na falta de propostas de diálogo com o lugar, seu tempo e suas comunidades e precisam se aproximar de questões da sociedade. Essas falhas estão afastando o público visitante, segundo o levantamento.
A relação próxima com a sociedade é exatamente o que o Muquifu tem realizado no Aglomerado Santa Lúcia, na região Centro-Sul da capital. “Dava vontade de chorar ao ouvir as histórias contadas pelo padre Mauro”, contou Alcoforado.
O padre Mauro Luiz é curador do museu e também participou da pesquisa.
Em situações de conflagração social, o museu precisa ter uma postura ainda mais participativa, segundo a museóloga Bruna Cruz. “Os museus são instrumentos contra a barbárie”, disse.
Outro equívoco citado no estudo é o contato com museus feito durante excursões escolares, o que contribui para a visão de que são espaços com regras rígidas.
“Se a escola achar que museu é obrigação e mandar alunos fazerem provinha, começou mal. Esse primeiro contato tem que ser prazeroso”, contesta o diretor do Oi Futuro.
Entre as boas surpresas, a preocupação com o acervo foi bastante citada. Os estudiosos estimam que a resposta apareceu devido à pesquisa ter sido feita na época em que o Museu Nacional foi destruído por um incêndio.
(*) O jornalista viajou a convite do Oi Futuro.