Homenagem

O legado múltiplo e delicado de Ângelo Machado

Médico, professor, ambientalista, entomológo, escritor e dramaturgo, falecido em abril, dá nome à produção dirigida pela neta, Mariana Machado, que estreia nesta quinta na ‘Mostra Ecofalante’

Por Patricia Cassese
Publicado em 12 de agosto de 2020 | 18:25
 
 
normal

Como a de tantas pessoas mundo afora, a relação da cineasta Mariana Machado com os avós foi pontuada por momentos de ternura e cumplicidade que ficaram tatuados na memória da belo-horizontina, que hoje contabiliza 24 anos. O diferencial, no seu caso, é que essas lembranças dividem espaço com outras que guardam, digamos assim, muitas singularidades. Ao menos as que concernem ao avó paterno. Para citar um exemplo, ela se recorda do dia em que o flagrou, concentradíssimo, na leitura de uma obra científica que versava sobre o aparelho reprodutor de uma espécie de libélula, a Orthetrum chrysostigma. Detalhe: Machado estava lendo a obra em sua edição original, em alemão. Em outro momento, lá estava ele, totalmente absorto, devorando uma publicação sobre o vocabulário zoológico na língua tiriyó.
 
Bem, é possível que, a essa altura do relato, o leitor já tenha matado a charada. Sim, o avô de Mariana é o médico, professor, ambientalista, entomológo, escritor (membro da Academia Mineira de Letras) e dramaturgo Ângelo Machado, que faleceu em abril último, aos 84 anos. Figura conhecidíssima e querida na cidade, Ângelo deixou um legado de valor imensurável. Para se ter ideia, descreveu mais de cem espécies de libélulas (sua grande paixão) e criou o Laboratório de Neurobiologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Mas não bastasse a contribuição à ciência, também escreveu dezenas de livros infantojuvenis, três para adultos e textos para teatro que alcançaram notável sucesso de público, caso de “Como Sobreviver em Festas e Recepções com Buffet Escasso”, encenada por Carlos Nunes.
 
Em 2018, Mariana resolveu partir para uma missão hercúlea: falar sobre esse avô de múltiplas facetas em apenas 28 minutos. O resultado, ela apresenta nesta quinta-feira (13) a todo Brasil, com a estreia do curta “Ângelo”, que integra a “Mostra Ecofalante” – essa, em cartaz até o dia 20 de setembro. Como todos os filmes da iniciativa online, “Ângelo” ficará disponível em streaming, no site da mostra, por 24 horas. 
 
Embora, obviamente, deva, no futuro, integrar outros festivais, trata-se, pois, de uma atração imperdível. O curta foi filmado quase inteiramente na casa onde Ângelo viveu por 50 anos, na região da Pampulha, ao lado de sua esposa, Conceição Ribeiro Machado, também cientista e professora titular do departamento de morfologia da UFMG.
 
Há dois anos, ao ser informado do projeto da neta, Ângelo Machado se entusiasmou de pronto e de tal forma que o processo foi tocado exclusivamente pelos dois – além de diretora e montadora, Mariana assumiu outras funções, como produção, fotografia e som. Essa decisão, vale dizer, foi tomada por ela também pensando em deixar o avô mais à vontade. E, sim, a intimidade entre os dois só fez crescer. “Eu acredito muito no cinema como modificador de realidades. Onde ele se insere, afeta a realidade em seu entorno. E nesse filme, para mim, foi muito interessante ver como a nossa rotina, o nosso cotidiano compartilhado, a nossa própria relação, as nossas vidas, naquele momento, estavam sendo modificados pelo processo – e de uma maneira muito bonita, principalmente por sermos cúmplices naquele processo criativo. A gente se divertiu muito, um puxava ideia do outro”, conta. 
 
Logo no início do filme, o espectador se depara com imagens de objetos que remetem às várias vertentes que Ângelo percorreu em sua trajetória. ““Fiz uma lista de alguns objetos e seres que me lembram de meu avô. Depois os busquei em sua casa, e os coloquei sobre essa mesa. uma lupa, uma bengala, um microscópio, uma borboleta do gênero Caligo, uma maraca tiriyó, um livro sobre a serra do cipó, Uma libélula, especialmente essa, Mnesarete mariana. Meu avô pôs nomes de netos e filhos nas espécies novas de libélulas que ele classificou."
 
Embora tenha falecido antes do lançamento oficial, Ângelo Machado conseguiu assistir ao filme pronto. “Ele inclusive acompanhou os cortes e gostava muito de ver o resultado. Ria, se emocionava. Várias vezes meu avô me chamava: ‘Ah, vamos ver o filme’. Pensava nele também como uma forma de um legado, de imagens dele, não só em fotografias, mas em movimento, que pudessem ser vistas por outras gerações da família, como o meu primo Augusto, de 2 anos e meio”, conta Mariana. 
 
O ‘saber viver’ como um norte para a vida, Retratar o avô em movimento, na dimensão do presente, foi desde o início uma diretriz assumida por Mariana, que procurou captá-lo emulando os mesmos fazeres que praticava no passado, mas agora com o corpo idoso. “Convidei ele para ir ao borboletário comigo (do Jardim Zoológico de Belo Horizonte) para gravarmos uma cena. Antes, ele coletava borboletas no campo, mas foi ficando mais velho e acabou deixando isso de lado.  Queria criar então uma cena em que ele relembrasse desse passado através de seu próprio corpo, queria que ele vivenciasse isso de novo, no presente. E ele gostou muito da ideia. A experiência fílmica o levou a ver essas borboletas novamente soltas, várias ao redor dele. Essas cenas entraram para o filme", narra ela, acrescentando que, no meio da montagem, foi surpreendida pela revelação do avô, de que guardava imagens em super 8 das várias incursões que fez na Amazônia. Material que, claro, acabou sendo incorporado ao filme. 
 
Desafiada a descrever as qualidades do avó, Mariana ressalta o humor, o “saber viver”, a sapiência de espectro amplo e o carinho que ele demonstrava pelas pessoas. “O modo como era gentil e atencioso, no sentido de olhar para as pessoas de um jeito muito bonito. Na verdade, eu gostava d sua visão do mundo”, descreve. Saudosa, Mariana se lembra dos Natais da infância, quando todos os primos se reuniam, encantados, em torno do patriarca – quando faleceu, Ângelo tinha sete netos e uma outra, Laura, a caminho – para, por exemplo, verem a criação de bichos-pau dele. Ou de quando Ângelo fez todos fecharem os olhos em torno de um cupinzeiro do quintal de sua casa para, depois de contar de dez a zero, se depararem, ao abri-los, com dezenas e dezenas de aleluias voando. Um episódio mágico que marcou todos. “Aquele momento foi super intenso.  Nas nossas infâncias, ele representava essa figura quase mágica, fantástica. Completamente conectado com a natureza", diz. 
 
Aliás, foi justamente estas características, o respeito e o apreço à natureza, que fizeram com que o curta-metragem compusesse a “Mostra Ecofalante”, que, como o nome já indica, debruça-se em particular sobre este veio, tão importante na vida desse mineiro que deixou saudades.
 
*Estreia do filme “Ângelo”, de Mariana Machado, na nona edição da “Mostra Ecofalante de Cinema”
Data da mostra: 12 de agosto a 20 de setembro
Data de exibição do filme: a partir de 13 de agosto, por 24 horas
*Programação online e gratuita

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!