Luto

Poeta mineira Maria Lúcia Alvim morre aos 88 anos, de Covid-19

Autores mineiros lamentam a partida da escritora, que nasceu em Araxá e vivia em Juiz de Fora, onde foi internada

Por Patrícia Cassese
Publicado em 04 de fevereiro de 2021 | 07:53
 
 
 
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Luto na poesia. A morte, na quarta-feira (3), em decorrência da Covid-19, da poeta mineira Maria Lúcia Alvim, aos 88 anos, causou tristeza nos meios literários - não foram poucos os que lembraram o fato de a vacinação contra a doença já estar em curso no país, ou seja, lamentando ela ter sucumbido no momento em que a sonhada luz no fim do túnel está mais próxima. Internada, a poeta chegou a ser intubada no último final de semana, devido às complicações respiratórias.

Nascida em 4 de outubro de 1932, em Araxá, Maria Lúcia Alvim publicou cinco livros de poemas até os anos 1980: "XX Sonetos" (1959), "Coração Incólume" (1968), "Pose" (1968), "Romanceiro de Dona Beja" (1979) e "A Rosa Malvada" (1980). O título que veio mais recentemente a público, "Batendo Pasto" (foi lançado em agosto de 2020, em bela edição, pela editora mineira Relicário), foi, na verdade, escrito em 1982.

A Relicário, aliás, foi uma das primeiras a se manifestar diante da perda, em um texto assinado pelo nome à frente da editora, Maíra Nassif, que lembrou que o manuscrito havia sido confiado por Maria Lúcia ao poeta Paulo Henriques Britto para que fosse publicado apenas postumamente. "Através de um esforço de convencimento da poeta e de uma força-tarefa de Ricardo Domeneck, Guilherme Gontijo Flores e Relicário, o livro foi finalmente publicado, após quase 40 anos de sua redação. 'Batendo pasto' ganhou matérias e resenhas nos principais veículos de comunicação do país. Alvim deu entrevistas, falou sobre o livro e sua trajetória poética e gravou alguns vídeos lendo seus poemas. Apesar da tristeza com seu falecimento, ao mesmo tempo nos vem o conforto de saber que nossa autora pôde gozar em vida, aos 88 anos, a alegria da publicação de seu livro após tantos anos de silêncio, assim como presenciar o entusiasmo de poetas de novas gerações com sua poética", escreveu Maíra. 

A pedido do Magazine, alguns expoentes da cena poética da cidade falaram sobre o calibre da poeta. O poeta Mário Alex Rosa, na verdade, começou por colocar em relevo a raridade de ter, no seio de uma mesma família, três poetas, referindo-se ao fato de os irmãos de Maria Lúcia terem se enveredado pelo mesmo caminho. "Como se sabe, é raro uma família ter um poeta, e mais raro quando se tem três. É o caso da família Alvim, com Maria Lúcia Alvim, Chico Alvim e Maria Ângela Alvim. E mais raro quando essa tríade é formada por ótimos poetas - e cada um com sua linguagem. Embora Ângela Alvim tenha publicado tão pouco, fez um livro impactante que é o 'Superfície'. Dito isso, e sem me alongar é triste o dia de hoje (quarta), quando perdemos a ótima poeta Maria Lúcia Alvim por essa terrível pandemia". 

Ele lembra que Lúcia Alvim deixa uma obra que precisa ser relida "e até mesmo, quem sabe, seus livros reeditados separadamente, com aquelas belas capas, algumas até mesmo experimentais". "Isso sem contar com os títulos dos livros que sempre me pareceram muito originais, como o último 'Batendo Pasto', publicado recentemente graças aos poetas Ricardo Domeneck, Paulo Henriques Britto e Guilherme Gontijo Flores, sob os cuidado da editora Relicário. De sua poesia se pode destacar para além dos sentidos, que são sempre mais subjetivos, a qualidade e o domínio de diversas formas como o soneto, redondilhas e mesmo o verso livre. Ou seja uma poeta que conhecia a técnica sem perda das emoções", pontua Mário Alex.

O poeta Carlos Barroso, por seu turno, resumiu o sentimento que perpassou os admiradores da obra da poeta diante da causa de sua morte. "Mais vale a magnífica obra poética de Maria Lúcia Alvim, mas é necessário lembrar que ela é a primeira vítima entre nomes de proa da poesia brasileira na pandemia, em um país de governo insano, anticientífico e antiliterário".

E prosseguiu: "Com uma obra deslocada de maneirismos e escolas literárias, Maria Lúcia Alvim sempre mostrou uma poesia contemporânea, em que batem signos e sinos do nosso tempo". Barroso ressalta que "até mesmo a não-desejada morte pode se render à poesia", como no verso do poema 'Aquavia' (1979): 'marejados de sono - navegamos/que esse rio de amor e de abandono/seja leito comum para quem morre". "Tenho reforçado, sempre que posso, o poderio da poesia feminina em Minas. E ela perde um de seus expoentes", finalizou ele.

Em seu perfil no Facebook, Ricardo Domeneck, um dos responsáveis pelo fato de o livro "Batendo Pasto" ter sido publicado ano passado, escreveu palavras potentes: 
"Diz-se no interior do país, quando morre alguém que fez tanto, teve uma longa vida, que a pessoa 'cumpriu sua missão'. Faz parte do nosso vocabulário do consolo para o inconsolável, como o 'Não morreu, descansou' (...) Mas Maria Lúcia Alvim não merecia morrer dessa forma, lutando por oxigênio, brigando para respirar, isolada, sozinha. Maldito vírus, maldito governo incompetente. Morrer de uma doença quando já existia a vacina".

E continuou: "Como escreveu Herberto Helder em seu citadíssimo poema, perguntando se tinha paixão o recém-morto, eu respondo a vocês que dessa mulher não se tenha qualquer dúvida quanto à resposta. Tinha paixão. Deixou poemas. Publicados. Inéditos. Essas coisas que tantos chamam de supérfluas. De não-essenciais. Não receberá cortejo dessa República em frangalhos. O país mal sabe o que perde. Tive a honra de conviver com ela em presença e imagem virtual nos últimos meses. De, ao lado de Guilherme Gontijo Flores,  Paulo Henriques Britto e Maíra Nassif, talvez ter proporcionado a ela uma pequena alegria com a publicação de seu ‘Batendo Pasto’ (2020)".

Guilherme Gontijo Flores lembrou que se hoje a partida da poeta é lamentada, em 2019 poucos sabiam se ela ainda estava viva ou morta. "O que era um pequeno atestado de morte da obra", reflete. Com a publicação de "Batendo Pasto", o nome da poeta passou a circular nas novas gerações. "Eu diria que o legado dela ainda está em movimento, crescendo, espero que agora de modo irreversível", disse, ao Magazine, citando que se sento da primeira geração escrevendo influenciada por ela..

Ao Magazine, Guilherme enviou uma estela funerária feita por ele e o ilustrador Daniel Kondo para a poeta. "Estela é uma inscrição fúnebre. No nosso caso, é um poema em homenagem à pessoa falecida. Fizemos para 2020 um projeto chamado Coestelário. Esta, para Maria Lúcia, é a única que decidimos fazer para 2021, porque foi muito importante para a gente".

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