Foi lá pelos idos de 2014 que, ao ministrar oficinas e aulas em escolas públicas, o cineasta Déo Cardoso começou a sentir um certo incômodo, que paulatinamente foi ganhando contornos mais definidos. "De início, eram inquietações, uma coisa que a gente não sabia muito bem o que era, mas que depois vi ser a ascensão de um pensamento neofascista", diz, localizando neste período o embrião do filme "Cabeça de Nêgo", que, depois de exibições em festivais - inclusive a Mostra de Cinema de Tiradentes, no ano passado -, entra nesta quinta-feira em circuito comercial.
Finalizado em 2020, o longa teve sua trajetória interrompida em função da pandemia, mas, ao vê-lo, a constatação é a de que segue tão atual como quando foi engendrado. "Eu até adoraria dizer que é 'ah, um filme que ficou datado, é um retrato daquela época', mas, infelizmente, toca em feridas abertas que são atemporais. Estavam abertas na época em que fiz e que, de lá para cá, continuam abertas e sangrando", analisa ele, para depois ponderar que, na verdade, ao que o filme flagra poderia-se acrescentar, nos dias atuais, uma outra mazela: o retorno da fome.
"Cabeça de Nêgo" foi rodado no Ceará, tendo como única locação uma escola pública e as ruas de seu entorno. A narrativa é centrada em Saulo (Lucas Limeira), um aluno que, no meio da aula, sofre uma agressão racista, que passa despercebida ao professor. Ao reagir a ela, confrontando o colega, branco, aí sim, o aluno chama a atenção do mestre, que, numa interpretação equivocada, expulsa Saulo - que foi a vítima - da sala. A ordem não só é refutada pelo adolescente, como, na verdade, o faz tomar uma decisão drástica: ele resolve não sair da escola, mesmo quando os turnos de aulas são encerrados.
À noite, resistente, recluso nas dependências da instituição na qual, além dele, está apenas o vigilante (mas em outra sala, junto às câmeras de vigilância), Saulo passa a filmar, com a câmera de seu celular, as mazelas com as quais não só os alunos dali, mas de outras tantas escolas públicas espalhadas pelo país, convivem diariamente: rachaduras nos tetos, baratas circulando em torno dos ralos entupidos dos banheiros, livros didáticos parados, intocados (melhor dizendo, ainda embalados), cantinas nas quais ratos circulam livremente...
Saulo, que está no auge do seu despertar para o mundo, em pleno processo de conscientização de que é preciso se unir para reivindicar mudanças nas estruturas do poder, aos moldes de movimentos (inclusive mundiais) que o precederam, pressente que a hora é essa. E quando as imagens que ele captou viralizam, é hora de ir além - no caso, na companhia dos colegas que partilham seus ideais. E o "ir além" seria ocupar a escola, com cartazes e faixas, chamando a atenção inclsuive da imprensa para, daí, propor uma pauta de reivindicações - aliás, das mais justas.
Mas no meio do caminho existem forças que se opõem veementemente a mudanças - ainda mais quando a situação de caos na escola pode estar associada a um desvio de verbas já repassadas. Somados ao racismo estrutural, a uma imprensa interessada em minar a credibilidade do movimento e à ação daqueles que, mesmo sendo vítimas, se aliam ao opressor, a situação está armada.
Como tudo começou
Nascido no estado de Wisconsin, filho de pais brasileiros, Déo veio para o Brasil quando tinha dois anos. "Costumo dizer que sou cearense de snague, não de nascimento". Quando tinha de 7 para 8 anos, voltou para os Estados Unidos, onde ficou até os 12, retornando novamente ao Brasil. Mais tarde, passou nova temporada naquela país, fazendo mestrado em Cinema. Segundo ele, o roteiro do filme ficou pronto no segundo semestre de 2015, tendo sido mais tarde selecionado para o programa Longa-Metragem Afirmativo, do hoje extinto Ministério da Cultura. A verba, no entanto, só foi liberada em 2018, e o da edição, em 2019. Com o filme pronto no início de 2020, houve tempo para entrar na grade do Festival de Cinema de Tiradentes. "Ele foi muito bem recebido por lá, mas logo em seguida veio a pandemia e o caos, a incerteza vividas pelo cinema nacional".
Déo conta que o elenco foi formado predominantemente "por uma juventude de Fortaleza". "Pessoas formadas nos centros culturais abertos em gestões passadas, no seio das periferias com IDH mais baixos. Escolas como os Centros Urbanos de Cultura e Arte, abertos nos anos 2000. Muita gente saiu dali e estudou artes cênicas, cinema. Alguns eu já conhecia da cena artística daqui, caso do próprio Lucas, da Nicoly Mota, que fez a Clarisse (uma das amigas de Lucas); a Jennifer Joingley tinha sido minha aluna de audiovisual. Outros foram convidados, fiz testes. E a gente mesclou com duas pessoas relativamente já conhecidas à época - hoje, bem mais - que foram a Jessica Ellen e o Val Perré. E uma galera um pouco mais velha, consolidada do cenário local, que fez uma mistura muito bacana, com todos se ajudando".
Solicitado a descrever as características que marcam o personagem central, Saulo, Déo começa por salientar que "Cabeça de Nêgo" é um filme de maturação. "Então, eu queria incluir, no Saulo, características de quem ainda sonha, de quem tem utopias. De quem ainda acredita que pode mudar a sociedade com um simples ato, como ele acreditou que não sair da escola poderia mudar aquela realidade. E a doação, de se sacrificar em nome de um coletivo, isso que ele puxa dos Panteras Negras, algo que ele está lendo ali, influenciando ele. E algo marcante, os Panteras falavam suicídio revolucionário, que é quando você morre por causa do próximo. Saulo acreditava muito isso. Então, essas coisas que eu tinha quando adolescente, embora o filme não seja autobiográfico. Pode se dizer que ele é indiretamente autobiográfico - a questão dos Panteras me fascina desde jovem. Mas o personagem, na verdade, foi inspirado no Alan, um menino que foi meuu aluno, muito gente boa, um poeta, muito articulado".