Entrevista

'Precisamos participar cada vez mais das várias ambiências da sociedade'

Jaider Esbell, que se tornou bastante conhecido dos belo-horizontinos com sua participação ano passado do Cura, fala sobre arte e representatividade

Por Patrícia Cassese
Publicado em 26 de janeiro de 2021 | 08:52
 
 
 
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No ano passado, mesmo em meio à pandemia, Jaider Esbell fez a população belo-horizontina se sentir mais leve diante da potência e da beleza de sua instalação, "Entidades", dentro do projeto Circuito de Arte Urbana, o Cura. Montada sobre os arcos do Viaduto Santa Tereza, a obra foi fotografada e postada a rodo nas redes sociais.

O ano de 2021 nem começou e Jaider já está aí, debruçado sobre uma agenda lotada. Reconhecendo a visibilidade, ele, no entanto, diz integrar um grupo que vem acompanhando o desenrolar deste momento particular, bem como o contexto que tudo tem sido colocado. Com justa razão. Esbell lembra que a arte sempre foi uma faceta inerente a todos os povos, por isso, já de pronto salienta haver, nos tempos atuais, uma palavra arcabouço para organizar melhor as ideias neste momento: arte indígena contemporânea, ou AIC.

Confira, a seguir, trechos da entrevista do Magazine com o líder e artista, que, em março, completa 42 anos de vida.

Você concorda que estamos presenciando um interesse mais aguçado para arte feito por indígenas? Veja, a gente, digo um certo grupo de artistas, além de produzir, tem buscado acompanhar o desenrolar disso tudo, como esse fenômeno está circulando, como isso tem sido colocado nos contextos. Aliás, a gente tem se referenciado a uma "arte indígena contemporânea", que é uma palavra arcabouço para organizarmos melhor as ideias e as temporalidades. Exatamente nessa sequência de palavras, a sigla é AIC. Isso vem de uma colocação nossa para contrapor um termo com o qual a academia vinha tratando o tema: arte contemporânea indígena. A gente, então, surge enquanto crítico disso e propõe essa alteração dos termos. Muda um pouco a lógica, dá a ideia de que o indígena sempre fez arte, desde sempre, desde a pintura rupestre. Embora não com essa palavra "arte", mas havia suas aplicações próprias. Então, a gente está falando dessa ideia de sistema, o "sistemão" mesmo da arte, que é basicamente eurocêntrico, enfim, branco. E propomos, então, que as pessoas considerem que os indígenas têm o seu sistema próprio de arte, com aplicações, funções e dimensões próprias, que estão diretamente relacionadas com o trabalho dos pajés, dos mestres, com a espiritualidade, essas funções todas. Seria um pouco isso. Eu, pelo menos, ando escrevendo e tentando fazer com que as pessoas leiam e analisem esses pensamentos nossos.

E a que conclusões e pensamentos tem chegado? A arte indígena, como falei, vem desde sempre. Agora, temos alguns expoentes, alguns ícones que estão mais, digamos assim, neste contexto de mídia, caso do Ailton Krenak, que é a nossa grande liderança, o nosso grande mestre. Mineiro, inclusive, e que tem um trabalho também muito atrelado à política. Cito também o Feliciano Lana, Desana, de Manaus, já falecido. Manaus, aliás, é um lugar que tem uma pulsação artística-espiritual muito forte, mas que tem ficado muito no âmbito da academia. Mas essa coisa de estar mesmo nos grandes palcos, como eu ia dizendo, é um pouco recente. Quando o Ailton Krenak participou da Bienal de São Paulo, com o artista Bené Fonteles, me convidou, assim como a outros artistas, como Gustavo Caboco (Wapichana). Então, a coisa tem adquirido uma dimensão maior de visibilidade. O que é fruto dessa articulação nossa mesmo, dessa leitura de mundo que a gente acaba fazendo e que passa por essa necessidade de a gente contrapor esse apagamento. E a arte talvez seja, digamos, uma das nossas últimas - mas mais potentes - ferramentas de luta. Porque, assim como a arte, o movimento indígena existe desde sempre também, mas é um movimento sobre o qual poucos brasileiros sabem. Não conseguem acompanhar ou dimensionar, mas estamos sempre na resistência, nas bases. Fazendo aí esse front de resistência mesmo, levando bala de fazendeiro, sofrendo as consequências do alcoolismo, da evangelização. E é uma luta invisível. Eu sempre uso o parâmetro do movimento negro para dizer, sensibilizar as pessoas de que os povos indígenas têm estado nessa desvantagem. E aí são várias questões que são colocadas. E nesse meio tempo todo, meu nome e meu trabalho, acabaram se destacando porque tenho, de uma certa forma, um certa facilidade de fazer essas multifunções que uma carreira (artística) exige, desde escrever um texto curatorial, fazer uma autocuradoria, articular espaços, articular toda a construção de uma cena mesmo. Eu tenho essa facilidade. Eu sou aqui de Roraima, estou falando contigo aqui da minha galeria, que está completando sete anos de existência. 

Aliás, fale um pouco da sua trajetória artística... Me lancei artista há dez anos, as primeiras obras que eu assino são de 2011, e aí fui seguindo, levando adiante esse trabalho, conectando artistas que já estavam trabalhando há muito tempo, mas isolados, de uma forma restrita, mais limitada, para a gente pensar essa coletividade e colocar cada vez mais essas potências a serviço do movimento e do protagonismo dos artistas.  A galeria, na verdade é também meu estúdio. E é um laboratório. Produzi três encontros aqui, em Roraima, chamados 'Encontro de Todos os Povos' - em 2013, 2014 e 2015. Foi uma forma de eu pesquisar mesmo essas potências, conhecer mais isso e também mostrar para meus pares o tamanho da potência que a gente é e muitas vezes não conhece. Montei um acervo, quando os eventos acabaram, porque a ideia não era mesmo manter daquela forma. Era mais, como falei, um laboratório de experimentação. Mas aí gerou um acervo bom e decidi abrir aqui, na cidade de Boa Vista, na minha casa, junto com meu estúdio, o que chamei de Galeria de Arte Jaider Esbell, de arte contemporânea. 

Que comercializa arte indígena contemporânea... Então, comercializo obras de vários artistas que passam por aqui e deixam seus trabalhos. Compro também, porque muitos têm uma realidade financeira muito difícil, então, basicamente compro as obras e coloco aqui na galeria. Passa alguém, gosta e compra, funciona um pouco nesse sistema, não é exatamente uma questão meramente mercadológica. É uma coisa mais política. A galeria fica num bairro relativamente nobre da cidade, é uma forma também de a gente mostrar para a sociedade que nós existimos e que somos capazes inclusive de estar nos lugares nobres da cidade. De uma maneira geral, os indígenas ficam muito nessa questão da periferia. São periféricos, e quando vêm das aldeias, vão para as periferias. E aí através da arte a gente vê que é possível alcançar outros horizontes, estar em outros ambientes, inclusive nesses de elite. São várias questões que estamos tanto estudando quanto tentando também fazer com que as pessoas entendam, em uma função educativa, conscientizadora, digamos.

Como está a sua agenda para esse ano, embora ainda estejamos sob a pandemia... Eu estou agora em Roraima, virei o ano aqui. Vim de São Paulo em novembro, eu estava trabalhando articulações em São Paulo. Fui a Minas e depois São Paulo, fiz uma perfomarnce na Pinacoteca, fiquei algumas semanas articulando e vendo outras coisas. Aqui, vou nas comunidades, faço meio de campo, que é uma das minhas funções também: ir nas comunidades, conversar com as pessoas... E uma das coisas que eu já acertei para o ano foi uma exposição com a galeria Mila, que fez muita questão de realizar um projeto comigo. E aí eu propus uma parceria na qual a gente vai abrir no dia 13 de fevereiro a mostra "Ruku: Apresentação". (A iniciativa) é uma forma de a gente estar dialogando com esses espaços de galeria, e tratando também da forma como a gente gostaria de ser abordado.

Em que sentido? Porque tem um assédio muito grande a partir do momento que nosso trabalho ganhou uma certa notabilidade. Querem nos representar aos moldes como vêm fazendo historicamente no sistema, e aí a gente pensa que pode haver uma outra forma de nos relacionarmos, e uma delas é a de eles que nos auxiliem a fazer com que a socidade e a opinião pública conheçam cada vez mais os indígenas da atualidade. Saber que existem, que estão vivos, têm todo um mundo. Querem, podem e devem participar cada vez mais das várias ambiências de uma ideia de sociedade global, digamos assim. Estou viabilizando tudo isso e em fevereiro devo embarcar, em princípio para o Rio,  para algumas reuniões com museus, e no dia 10 vou para São Paulo, acompanhar essa abertura. Devo ficar até março, e depois retorno a Roraima, e vou acompanhando mais um pouco, nesse horizonte mais próximo. E aí estou assinando uma curadoria para o MAM SP, para a exposição "Moquém – Surarî", de arte indígena. Estou trabalhando pra realizar os projetos, em breve. Essa deve abrir em agosto. Estou também monitorando uma exposição que era para ter sido aberta no Canadá, no ano passado, e ficou para esse ano, de artistas indígenas da Amazônia com indígenas do Ártico, vamos ver se vai ser realizada. No mais, acompanhando muitos pesquisadores, lendo muito material... Tenho cursos online para ministrar, algumas pesquisas acadêmicas para acompanhar... Vou fazendo esse papel mais amplo, de um articulador mesmo, como o meu trabalho acaba se configurando.

Que bacana, essa iniciativa com povos originários do Ártico... Veja, na verdade, as questões indígenas são sempre globais. A gente acaba se enquadrando mais nesas coisa do Brasil, mas no passado tudo era fluido e conectado. Depois veio a colonização e separou tudo em mapas e fronteiras. Agora, a arte está furando tudo isso e possilibidadeo essa abertura para essas conexões da atualidade..

Em tempo: Aexposição Moquém - Surarî: arte indígena contemporânea integra a programação da 34ª Bienal de São Paulo, e acontece de agosto a dezembro, na sala Paulo Figueiredo, do MAM SP.  Com curadoria de Jaider Esbell, assistência de curadoria de Paula Berbert e consultoria de Pedro Cesarino, a mostra reúne trabalhos de artistas dos povos Baniwa, Huni Kuin, Karipuna, Krenak, Marubo, Makuxi, Patamona, Pataxó, Tapirapé, Taurepang, Tikmu'un_Maxakali, Tukano, Xakriabá, Xirixana, Wapichana e Yanomami.

Serão exibidos desenhos, pinturas, fotografias e esculturas que se referem às transformações visuais do pensamento cosmológico e narrativo ameríndio, apontando para a profundidade temporal. Segundo o corpo curatorial, o tempo da arte indígena contemporânea não é refém do passado, mas antes o mobiliza no presente para reconfigurar posições enunciativas, relações de poder e impasses civilizatórios.

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