Poesia

Primeira parte de tríptico do escritor Pedro Eiras chega agora ao Brasil

O lançamento do livro Inferno se insere no bojo do início das atividades, no país, da editora Assírio & Alvim

Por Patrícia Cassese
Publicado em 20 de junho de 2022 | 20:03
 
 
 
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Única obra de poesia finalista do prêmio Oceanos em 2021, "Inferno", do escritor português Pedro Eiras, é lançada agora no Brasil no bojo da chegada, ao país, de uma das mais tradicionais casas editoriais em língua portuguesa, a Assírio & Alvim. Além do citado certame, a publicação foi vencedora do prêmio literário Antônio Cabral e finalista do Prêmio Pen Clube Português de Poesia. Livro que marca a estreia em poesia do autor - professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e conhecido pelas obras de ficção e ensaios -, "Inferno", na verdade, constitui-se o primeiro volume de um tríptico que se completa com "Purgatório" " Paraíso" - o que, evidentemente, remete o leitor a "A Divina Comédia", de Dante Alighieri. Mas, diga-se, uma revisita sob uma perspectiva contemporânea.

Em entrevista ao Magazine, Pedro Eiras contou que o processo da escrita de "Inferno", "Purgatório" e "Paraíso" teve muito a ver com um apelo que vem de tempos anteriores. "Tem a ver com responder a um projeto de Dante, herdar uma linguagem, herdar determinados problemas de ordem ética, moral, política, e tentar responder de repente num outro tempo, num outro lugar, com uma outra voz. Portanto, é um pouco como andar e seguir as pisadas de alguém que fez o caminho primeiro e depois falhar o caminho de propósito, perder-me onde o caminho está aberto, tentar desviar-me  e encontrar outra solução", explana, poeticamente.

O autor acrescenta que é uma escrita que tem muito de "reescrita". "E a motivação vem do próprio Dante e de todos os danteanos que se seguem ao longo dos séculos, do milênio seguinte, porque, em rigor, é uma experiência de passagem, de testemunho, da poesia para outro ainda, para outro um autor para outros a seguir. Sinto que, ao escrever, eu talvez seja o último eco que repercute depois de uma velha palavra ter sido disparada no espaço e no tempo. As reflexões que tento provocar nos leitores tem muito a ver com questões algo intemporais e que têm tudo a ver com o judaico-cristianismo que aparece em Dante, que atravessa Dante, e como tal, as questões do inferno, do purgatório e do paraíso, da culpa, da redenção, da limpeza, do arrependimento, todas essas questões me interessam muitíssimo". E que, acrescenta, merecem ser re-atualizadas outra vez, repensadas no dia de hoje. "Ou seja, são questões muito antigas e, simultaneamente, muito recentes".

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista

Já se enveredava anteriormente pela poesia, mesmo que os escritos ficassem guardados? Muito raramente, muito de onde a onde, o que acontecia era eu tentar escrever poesia, compreender que ainda não estava amadurecido, que ainda não tinha encontrado a voz, o ritmo e o timbre, então desistia outra vez. Portanto a resposta é sim e não, tentava, mas não completava e acabava por desistir e compreendia que os tempos não podem ser precipitados e os meses e os anos e as décadas de espera tem de existir, fazem parte de um processo de maturação e não é possível fazer batota com o tempo e com o amadurecimento.

Quando se deu, em sua vida, enquanto leitor, a descoberta de Dante Alighieri e qual o impacto da "Divina Comédia" em ti, a partir da primeira leitura? A minha leitura da Divina Comédia  foi acontecendo com o tempo, com paciência, sem urgência maior. Fui lendo e relendo os continuadores de Dante, comentadores de Dante, e a verdade é que entre ler e escrever podem passar 10, 15, 20 anos ou mais. Portanto, não aconteceu eu estar a ler Dante e no dia seguinte responder, enviar uma carta de volta, receber a carta dantesca e devolvê-la. Não, talvez a carta precise de 20 anos ou uma vida inteira para ser construída. 

Gostaria que falasse sobre sua iminente visita ao Brasil.... Quais são as atividades já previstas, seja dentro da programação da Bienal do Livro ou off… No Brasil, as minhas atividades na Bienal serão todos à volta dos livros. Vou apresentar a edição brasileira do "Inferno" pela Assírio & Alvim, mas também a apresentação de um livro difícil de classificar, chamado "Regras para direção do espírito", da editora Macondo, além de um livro de ensaios que acabo de formar e que é novo, embora aproveite alguns ensaios já publicados em Portugal. O livro vai chamar-se "A linguagem dos Artesãos" e será publicado pela editora Pontes. Estarei disponível para dialogar com leitores, autores, todos os interessados.

Como é a sua relação com a literatura brasileira, seja a mais clássica ou a contemporânea? O que o apraz? A minha relação com a literatura brasileira é muito irregular, ai de mim, tem muitas lacunas. Gostaria de ter mais tempo para ler muitos mais livros e poder apaixonar-me por tantos segredos que ainda estão escondidos e eu sei disso porque muito facilmente vou encontrando não apenas  pedras no caminho para citar o Drummond, mas pepitas de ouro pelo caminho. E isto significa, claro, nomes mais que conceituados que vão de Machado de Assis, aos primeiros modernistas  como Manuel Bandeira, a seguir um Drummond, mas também em meados do século já e a segunda metade, Clarice Lispector e claro como não um apaixonante Raduan Nassar e depois nos últimos tempos, nas últimas décadas muitos poetas que ainda estou a descobrir, que lentamente vou abordando e sobre, os quais tenho muita vontade de ler mais e escrever até quem sabe, vir a trabalhar academicamente já que sou também professor de literatura.

O que o prêmio (Antônio Cabral) que o livro "Inferno" recebeu representa para o senhor? O prêmio representa uma grande satisfação, de me ver reconhecido, compreender que determinados leitores encontraram neste livro algo que os pode surpreender, porque em rigor atrás dos prêmios estão leitores, e isso é o que interessa. Os livros são feitos quantas vezes na solidão, enfim,  uma solidão assombrada por fantasmas literários é certo, mas para todos efeitos há sim uma solidão e um corpo a corpo com e contra a palavra, mas depois os livros devem chegar aos seus leitores. É muito importante que aquilo que acontece a mim como leitor, possa acontecer a alguém que eu não conheço e que me lê a seguir.

Por ser de Portugal, deve constatar um movimento de brasileiros que estão optando por deixar o país rumo à sua terra. Muitos artistas, expoentes da música... O que pensa desse fenômeno? A palavra migração é muito ambivalente.Há boas e más migrações, acho. Há excelentes migrações por vontade de aventura e descoberta, fascínio pelo exterior porque não e depois existem as migrações  não escolhidas, mas forçadas, até mesmo imprescindíveis por uma questão de vida ou morte. Quando tantos brasileiros e brasileiras incluindo artistas vêm para Portugal, por escolha é excelente, do mesmo modo que seria se portugueses fossem viver e trabalhar no Brasil, se tem essa vontade, esse impulso.

Agora, a verdade é que o mundo está muito ameaçado e ameaçador. Constato também que grande parte dessas migrações ou imigrações para cá se devem a um clima de cerco, aperto, dificuldade, de perseguição, mal estar não só econômico, mas social e político. Espero que Portugal possa ser uma solução pacífica, acolhedora, generosa, mas é pena homens e mulheres terem que mudar de país simplesmente porque estão a ser expulsos. O inferno continua a ser hoje, e talvez este livro fale daqueles que não tem um lugar. Oxalá o meu paraíso possa devolver o lugar para todos os migrantes.

Em tempo: por último, mas não menos importante, a reportagem pediu a Eiras que escolhesse trechos do livro para os leitores do Magazine

A tarefa, aliás, ele de pronto definiu como difícil. "Haveriam muitas razões para escolher determinados trechos, por razões relativamente pessoais, secretas, críticas, quer dizer sou um leitor muito suspeito e movo-me dentro deste mapa, sabendo determinados atalhos, que se calhar mais ninguém conhece o que não está incorreto,também não é obrigatório, faz parte de escrever um livro", explicou. Mesmo assim, optou por comentar ("muito rapidamente") a abertura do Inferno, que, ressalva, é um primeiro poema de um primeiro canto dividido em tercetos, tal como acontece no início do Purgatório e no início do Paraíso também. "Ou seja, graficamente tento aproximar-me da matriz da comédia de Dante". 

O primeiro poema é um convite a estar perdido. "Ou, é uma constatação de que já estamos perdidos mesmo que ninguém nos convidou. Estarmos perdidos é a nossa condição e tentamos vez após vez inventar mais e mais máquinas para nos localizarmos no espaço e no tempo, mas apenas para descobrir que estamos tão perdidos quanto qualquer ser humano nos últimos dez mil anos ou mais até porque, acreditamos nos nossos mapas, calendários, o próprio GPS  Achamos que o GPS sabe  qual é o nosso destino. Quando chegamos ao lugar, a máquina diz “você chegou ao seu destino”, e eu pergunto-me: qual destino?", provoca

O segundo comentário é o canto quinto, "de que costumo falar várias vezes, a vários propósitos". Um poema que, diz começa “caem co”a calma os suicidas dos telhados”. "Eu não vou ler todo, nem comentar tudo, mas este início do poema é um jogo intertextual com Sá de Miranda que tem um célebre soneto em que “caem co”a calma as aves”no fim do dia as aves descem do céu, mas o verbo de Sá de Miranda é caem e a mim interessava-me muito dentro de um livro sobre o inferno, onde estão as pessoas que estão no inferno, e um livro que deve responder ao inferno de Dante onde existem os suicidas. É evidente que eu tinha que falar  dos suicidas, que aqui cruzo com uma imagem lenta de Sá de Miranda e como tal a queda das aves que era, talvez pacífica, aqui transforma-se numa queda mortal, mas com a lentidão das aves, o que torna esse suicídio muito peculiar".

E complementa: "Agrada-me muito o desfaçamento entre as imagens, entre a velocidade da queda e eventualmente a lentidão do desespero".

Confira, a seguir, o poema

Caem co’a calma os suicidas dos telhados.

Leves, lúcidos,
ponderadas as razões
do severo 
declive, 
caem, tímidos,
pedindo desculpa
pelo
corredor de vento
nas janelas. 

Pacientes, recapitulam
os argumentos
da morte:
as letras miúdas no seguro de vida,
uma palavra traída
esta dor sem conserto
num corpo descontinuado.

Morte em câmara lenta,
suspensa em fio de teia: 
eles pensam
este fastio de respirar, 
o currículo do sangue,
a vida em déjà vu;
ou, como diz o outro: «jejuo porque nunca encontrei nada
que gostasse de comer»,
assim ou parecido.

Calcularam
o aprumo do prédio, a velocidade
da queda. São
inteligentes,
lúcidos,
e calcaram com as melhores teses
o verdete da esperança.

Quase lhes desejava mais fé,
idiotia, mudez, 
ignorância

Caem, à vez, como o metrónomo
da chuva a entupir os bueiros. 
Outros, nem isso. Por um erro de cálculo,
 lapsos da física, a mão que tremia.

Resultado: fracturas, escoriações,
um gatafunho nos pulsos, fechando,
o alarme da vergonha a meio do sono: 
“nem à morte soubeste chegar a tempo».

É noite, a vida pesa, só um lençol preto sufoca
os adiados suicídios. 
Os corpos resignam-se aos dias
para serem enterrados ainda vivos. 

Mas quem tem uma morte própria, 

indivisa,”
que a guarde 
como à própria vida

 

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