Bom exemplo

Projeto Santa Leitura completa uma década de incentivo à leitura na capital

Iniciativa estimula a formação de novos leitores, em especial nas comunidades mais carentes de Belo Horizonte

Por Patrícia Cassese
Publicado em 31 de julho de 2020 | 03:00
 
 
 
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A artista plástica Estella Cruzmel não tem registrado o número exato, mas arrisca algo em torno de 10 mil. O montante diz respeito aos livros distribuídos gratuitamente pelo seu projeto Santa Leitura, que, neste ano, está completando vitoriosos dez anos de existência. As comemorações, claro, serão limitadas, em função do novo coronavírus: “Iam ser intensas. Eu planejava o aval para fechar a rua Silva Jardim (no bairro Floresta), chamar músicos, poetas... Ia ter uma mesa-cumprida de café da manhã”. Veio a pandemia, mas de forma alguma a data redonda está passando em brancas nuvens. 
 
Assim que a quarentena foi decretada, Estella passou a fazer algumas ações nas redes sociais do projeto, mas, principalmente, criou o “Santa Leitura: Rede Brasileira de Livros em Casa", que funciona da seguinte maneira: famílias interessadas em cultivar o hábito da leitura durante esse período de isolamento social se cadastram para receber, uma vez por mês, uma sacola personalizada com dez exemplares (cinco infantojuvenis e cinco de literatura adulta). Ao fim do período estipulado, os livros são devolvidos e devidamente higienizados, além de colocados por um tempo no estaleiro (segundo as orientações das autoridades sanitárias). Tomados os cuidados, logo estão prontos para serem destinados a outras famílias. 
 
Não só. Incansável, Estella também se desloca toda manhã para a praça Salvador Morici, na Floresta, onde deixa dez títulos por dia para quem quiser levar para casa. Por outro lado, são várias as pessoas que, já cientes da iniciativa, voluntariamente também deixam seus próprios livros por lá, impulsionando uma admirável rede de difusão cultural. 
 
A dimensão que o projeto adquiriu na capital mineira surpreende a própria idealizadora, que rememora como tudo começou. “Não premeditei chegar aonde cheguei, nem em sonho. Eu tinha uma loja de roupas no bairro Ipiranga, e, lá, em um cantinho, resolvi montar uma biblioteca, com o intuito de fazer um agrado aos clientes. No boca a boca, pessoas das redondezas ficaram sabendo e passaram a ir lá para pegar os livros. Algumas crianças passavam a tarde toda ali”, conta. 
 
E o que motivou levou Estella a idealizar essa ação? Na verdade, ela relata que nasceu em uma fazenda no interior de Minas (nas proximidades de Mariana) e só foi ter contato com livros aos 10 anos. “Tive uma infância totalmente desprovida de papel e lápis”, repassa. De qualquer modo, quando essa aproximação se deu, houve uma espécie de epifania, e, dali em diante, ela não só se tornou uma leitora incansável e voraz, como tomou para si a incumbência de tentar criar este hábito em mais e mais pessoas.
 
Em 2012, o fechamento da citada loja de roupas gerou um ponto de interrogação quanto ao futuro da empreitada. Foi quando o acaso tratou de intervir. A convite de uma freira que nem conhecia, Estella foi visitar a Comunidade Sagrada Família, no bairro Taquaril, onde as duas decidiram montar uma canto de leitura. Assim, pessoas carentes passaram a ter acesso à literatura. Dali, o projeto ganhou a sua versão ao ar livre, nas praças. No primeiro domingo de abril de 2013, o Santa Leitura ocupou a praça Duque de Caxias, em Santa Tereza. Na sequência, outras praças passaram a receber o projeto – inclusive, de outras cidades e países. Claro, a capital mineira é o epicentro, e o público já é mais do que fiel. 
 
Distribuindo literatura e carinho. “Tem gente que me conta que espera o mês inteiro pelo dia”, brinda Estella, referindo-se também a todo o evento que cerca a ação: além da distribuição de livros, há contação de histórias, leitura, convidados especiais (como palhaços) e até mesmo um grande lanche. “Duas sorveterias me ajudam, além de uma confeitaria, que fornece os sanduíches. Os bolos eu mesma faço”, relata ela. E se o público do Santa Leitura é formado pelos mais variados perfis, a artista tem uma satisfação particular quando o projeto atinge a população menos favorecida, que tem um acesso mais limitado aos livros. Estella, aliás, lamenta o preço das publicações no Brasil. “O livro ainda é muito caro, principalmente se considerarmos que o brasileiro, às vezes, não tem dinheiro para comprar carne. Mesmo com a opção dos sebos, é um mundinho pequeno, que pode comprar”, entende.
 
É desse público em particular que ela recebe seus mais calorosos retornos. “Como o de uma pessoa que não lia e, hoje, disse que não pode ver uma papel no chão que pega para ler. Ou aqueles que tomavam remédio para dormir e, com a leitura, não sofrem mais com a insônia. Teve um pai que me trouxe carne em retribuição pelo filho ter passado no Enem após adquirir o hábito da leitura com os livros da iniciativa. E uma senhora que me trouxe uma imagem de Nossa Senhora das Graças enorme. O projeto consome muito o meu tempo, mas o tanto que ganho em troca!… Me sinto mais jovem (em setembro, ela completa 70 anos), corro para lá e para cá (nos tempos ‘comuns’) e não tenho tempo para pensar em problemas”, enfatiza. “É uma troca de amor, conhecimento e energia”, arremata.
 
E de onde vêm os livros que Estella distribui? Atualmente, de doações. Por ora, aliás, ela nem está podendo aceitar exemplares, embora sempre acalente o interesse por títulos infantojuvenis. É que, em função da pandemia, as ações foram reduzidas. “Há um sebo do edifício (Arcangelo) Maletta, por exemplo, que sempre me repassa”, conta. Aliás, uma curiosidade: Estella relata que muitas pessoas levam livros para tentar vender a sebos do famoso edifício localizado no centro da cidade, mas quando são títulos que as lojas recusam (por já terem em estoque, por exemplo), acabam, para não voltar com o peso para casa, abandonando-os nos corredores. Muitos desses vão para o acervo de Estella. “Mas já houve tempo em que eu também adquiria. Até colocava avisos de ‘compra-se’ em estabelecimentos como salões de beleza”. Recentemente, Estella ganhou uma biblioteca inteira, mas, para não se expor muito em função da pandemia, pediu um tempo para a retirada dos exemplares. Quando tudo isso acabar, os exemplares serão devidamente preparados para seguirem essa cadeia potente de disseminação da leitura que, a partir daquela despretensiosa célula no Taquaril, dez anos atrás, se ramificou cidade afora.

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