Ao ter seu nome anunciado em público, em uma situação recente, Afonso Nunes ouviu duas palavras agregadas que lhe causaram, digamos assim, uma certa estranheza aos ouvidos: "o cineasta pernambucano". O arquear de sobrancelhas se deveu a  dois motivos: apesar de ter nascido em Pernambuco, há 51 anos, por ter vindo para Minas Gerais com apenas dois  (de início, para Montes Claros), Afonso passou a se considerar sim, mineiro. Quanto à profissão, ele prefere modestamente ser chamado de realizador. "Nunca me senti um cineasta, para mim, essa é a profissão de um Glauber Rocha, por exemplo. Ou mineiros como Cao Guimarães, Affonso Uchoa ou Rafael Conde, entre muitos outros daqui. Eu estou engatinhando", pondera.
 
Feitas as ressalvas, o realizador nascido-em-Pernambucano-mas-mineiro-de-coração apresenta nesta sexta-feira (31), às 23h30, ao grande público, o seu primeiro longa-metragem "A Cor Branca".  Certo, o próprio Nunes reconhece que o filme se ajustaria muito bem à tela grande - e, na verdade, foi exibido assim, em vários festivais que percorreu antes dessa estreia oficial. Mas, frente à pandemia, e o fechamento das salas de exibição, seu début acontece na "Faixa de Cinema" da Rede Minas, e, melhor ainda, online para todo país, por meio do site redeminas.tv. "Ao final, estou adorando que seja assim", confessa ele, que, a pedido da reportagem do Magazine,  colocou em repasse toda a gênese da empreitada. 
 
Tudo começou quando, no exercício de sua profissão de formação acadêmica, a de engenheiro, Afonso foi visitar uma mineradora. "Foi quando percebi o parto  necessário para entrar num lugar assim, o que começa com o treinamento de segurança necessário. Jà lá dentro, percebi o quanto o lugar é cheio de barulho, poeira... Observar tudo aquilo, os trabalhadores se movimentando naquele ritmo, foi me deixando agoniado", rememora. 
 
Foi quando veio-lhe à mente uma percepção: a de que raramente se vê um filme feito em Minas que tenha a mineração como pano de fundo, não obstante a importância que a atividade tem na economia do estado. Daí, o insight para "A Cor Branca". "De pronto, fiz uma pesquisa enorme sobre a logística e o funcionamento de uma mineradora, bem como os motivos que movem as pessoas nesse ambiente", detalha. 
 
"A Cor Branca" lança seu foco sobre o impacto de uma mineradora em seu entorno, em particular com as comunidades. "A linha geral é essa, e entendo ser um filme muito contemporâneo também no sentido de tratar a pseudo-liberdade que as pessoas entendem ter. Porque, afinal, quem está preso? Quem está com uma tornozeleira eletrônica ou quem está incumbido de vigiar a pessoa que está com a tornozeleira? Ou quem está na rotina de um trabalho massacrante, ou mesmo na sua própria casa? O filme também traz essa provocação", pondera. 
 
O fio condutor da história - "ou da não-história", como ele aventa - é Antônia (vivida pela atriz Regina Mahia). "A personagem dela perpassa todos os ambientes (mineradora e comunidade)". Antônia, ressalve-se, é uma assistente de blaster, que vem a ser o  responsável técnico pelo ato de dinamitar, que faz parte do dia a dia das mineradoras. "A princípio, ela é a única que não está totalmente presa àquele ambiente, pois se desloca o tempo inteiro". Outro personagem importante é vivido por Kdu dos Anjos: ele interpreta um jovem que é monitorado por meio da tornozeleira eletrônica. A trama traz, ainda, duas senhoras idosas e um grupo de haitianos, entre outros não menos importantes para a ambiência da trama.
 
O nome diz respeito ao aspecto visual que se observa nas cercanias de uma mineradora, a tal cor branca. "Tenho um pequeno sítio em Matozinhos, e sempre que vou lá para arrumar alguma dor de cabeça (risos), essa cor branca que percebo no percurso me impressiona. Por isso o filme se chama assim. Em épocas, vamos dizer, 'normais', são explosões que você escuta longe", impressiona-se.
 
Evidentemente, para filmar o longa, Afonso precisava adentrar uma mineradora, o que se revelou tarefa hercúlea. "Nenhuma quis me receber, em dado ponto, eu já estava desesperado. Mas, por intermédio de um primo, acabei conseguindo contato com uma mineradora menor, em Sete Lagoas, onde filmamos". Outras cenas tiveram como cenário Capim Branco, Matozinhos e  o município de Seropédica, localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro. É que, em dado momento, Afonso percebeu que faltava algo em meio ao material já filmado. Uma cena. E se deu conta de que precisava ter o registro de uma detonação. "Mas, para acontecer uma explosão, existe toda uma logística por trás". Ou seja, não poderia ter um simulacro, mas, sim, torcer que pudesse registrar uma real. E a mineradora de Sete Lagoas não poderia, naquele momento, recebê-lo novamente.
 
Um dos blasters que conheceu no processo de pesquisa, porém, tinha o contato com uma mineradora de Seropédica, que autorizou a equipe a acompanhar a detonação. "Foi tudo tão urgente que nem toda a equipe não poderia se deslocar para lá, mas saímos às 5 da tarde, às 2 da manhã, chegamos lá, e as 7 já estávamos à espera da explosão de 30 toneladas de pedras". Uma aventura. Afonso brinca que o filme, por trazer planos fixos e longos, em certos momentos poderia até transmitir certa placidez (no processo de feitura). "Mas foi tudo muito estressante. O que está por trás dele é só sofrimento", brinca, hoje já mais aliviado. De todo modo, ele entende que "trabalhar com cinema é gerenciar problemas". "Fazer um longa é um parto, uma humilhação atrás de outra". 
 
"A Cor Branca" foi finalizado no início de 2019.  Como, em dado momento, a negociação para lançá-lo no circuito não avançava, Afonso teve o insight de, neste ínterim, fazer um curta. E assim surgiu "Desvio".  "Fala de uma trabalhadora que deixa a mãe em casa e só volta uma semana depois. Aqui, na região (onde tem o sítio), é muito assim. Ele nasce dessa perspectiva. Ao fim, acho que acertei nessa passagem do curta para o longa", reflete. 
 
Em tempo: "A Cor Branca" ganhou Menção Honrosa no Festival Internacional De Cine Sobre El Mundo (Construir Cine), na Argentina, e também foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Curitiba (8º Olhar de Cinema)  e na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2019.