Por questões da quarentena causada pela pandemia, o rapper belo-horizontino Roger Deff gravou seu novo álbum, “Pra Romper Fronteiras”, lançado nesta sexta-feira (22) nas plataformas digitais, de uma maneira curiosa. Nas tardes de domingo, quando o silêncio se fazia mais presente e os ruídos vindos da avenida Cristiano Machado, na parte Noroeste de Belo Horizonte, eram menos incômodos, o músico pegava o gravador digital, entrava em seu quarto e abria a porta do guarda-roupa, para que ela funcionasse como uma espécie de isoladomento acústico. De costas para o móvel, ele colocou voz em todas as oito faixas que compõem o disco. À distância, DJ Giffoni e Fernanda Macaco (produção musical, beats e instrumentos) finalizaram o trabalho.
“Foi um processo muito doido. Quando comecei a fazer rap, era tudo muito díficil. Agora, consigo fazer um disco usando um gravador digital”, comenta Roger, nome presente no hip hop de Minas Gerais desde o fim dos anos 90, quando surgiu ao lado do Julgamento, grupo com o qual lançou os álbuns “No Foco do CAOS” (2008), “Muito Além” (2011) e “Boa Noite” (2018). Em 2019, saiu o primeiro trabalho solo, “Etnografia Suburbana”.
Agora, o que vem à público são composições que começaram a nascer em dezembro de 2020, quando Roger sentiu mais uma vez a necessidade de usar sua caneta afiada para rimar e versar sobre o Brasil e o mundo de cabeça para baixo, racismo, pandemia, fascismo e censura, mas também para render tributos e prestar reverências ao hip hop, cultura que fez o rapper ver - e ocupar - o mundo de uma outra forma.
“As pessoas entendem o hip hop como uma cultura estadunidense. Tudo bem que nasceu lá, mas é mais que isso. Ela nasce com dois imigrantes jamaicanos, o Clive Campbell (DJ Kool Herc) e a Cindy Campbell, no Bronx, em uma Nova York totalmente desassistida pelo Estado, e os afro-americanos e imigrantes latinos também têm um papel forte nesse surgimento. A cultura hip hop ganhou o mundo através dos discos, filmes e videoclipes e o que era uma tecnologia social local virou do mundo, foi incorporada em outros países, inclusive no Brasil, porque os problemas eram muito parecidos", discorre o MC, que está pesquisando o hip hop de BH no mestrado em artes.
Essa identificação para além da questão territorial rompeu fronteiras, como o MC continua a dizer: “Para a minha história, e a de muita gente, o hip hop é essencial. O hip hop me disse ‘cara, é possível, não é fácil, mas vai lá é faz’, abriu minha mente para eu poder me enxergar em vários lugares, em uma universidade. A minha história é a história de muita gente”.
Segunda faixa do disco, “Pra Romper Fonteiras” foi a primeira composição dessa nova safra. “Te querem opaco, te querem omisso, silenciado, enganado e submisso/ Refém do medo, o seu papel no enredo/ Não entendeu, não tem lugar neste contexto/ Se é pra romper fronteira eu vou/ Caminhando além eu sei bem quem sou/ Sigo com os irmãos no flow, Se é pro embate, aqui estou”, canta Roger em um trecho da canção, que tem participação da cantora Michelle Oliveira e dos DJs Hamilton Júnior e Flávio Machado e usa samples de Mano Brown, Sabotage, Matéria Prima, Thaíde e MC Negão, referências para o artista.
A homenagem ao hip hop está deliberadamente impregnada na sonoridade do álbum, que valoriza a figura do DJ, como explica Roger Deff: “Conversei muito com os produtores e queríamos fazer um disco muito atrelado ao DJ, com músicas de pista que eles gostassem de colocar para tocar, mas que também os b-boys gostassem de dançar. O disco traz as bases do hip hop, mas não é saudosista, estamos falando também do futuro”.
O tributo ao hip hop fica gravado também em “Um MC”. “Conexões” é resultado da parceria com Sérgio Pererê, que escreveu a letra com Roger e coloca vocais na faixa. O poeta e ensaísta belo-horizontino Flávio Boave é co-autor de “A Pior Pobreza”. “Que Ilumina” é uma espécie de oração para uma senhora de pele negra, a Dona Luzia, personagem fundamental na vida de Roger. Luzia faleceu em junho de 2020 após sofrer um AVC. “Ela é minha tia-avó, criou minha mãe, mas também foi minha mãe, minha avó e nossa matriarca. A base da nossa família. Sem ela, nada disso aqui existiria”, ressalta o cantor.
Roger Deff diz que estamos vivendo um momento catastrófico e não há brechas para romantizações, mas “Pra Romper Fronteiras” é um disco que fala desse período de crise sempre com esperança. Segundo o compositor, o que o move é a utopia: “Estou aqui para o embate, estou falando desse fascismo que está colocado no Brasil. Como homem negor criado na periferia, tive que lidar com várias situações que machucam, mas preciso criar algo que me dê vontade de caminhar. Esse é o meu jeito de conversar com o Brasil de 2021. Escrevo pensando nas pessoas, mas é uma conversa comigo mesmo também”.