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Rommulo Vieira Conceição instiga com sua instalação multicolorida no Inhotim

A obra O Espaço Físico Pode ser um Lugar Abstrato, Complexo e em Construção pode ser vista no Jardim Sombra e Água Fresca

Por Patrícia Cassese
Publicado em 09 de setembro de 2021 | 18:43
 
 
 
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Aos 53 anos,  o artista Rommulo Vieira Conceição vem dando asas à sua criatividade em várias frentes - uma delas, no plano das instalações. "Geralmente, são trabalhos de grandes dimensões - no caso desse, em particular, muito grande", enfatiza ele, ao apresentar para a imprensa, no último dia 27 de agosto, a obra "O Espaço Físico Pode ser um Lugar Abstrato, Complexo e em Construção", instalada no Jardim Sombra e Água Fresca, no Instituto Inhotim.

A visita dos jornalistas ao local foi intermediada pelo curador Douglas de Freitas, e teve como objetivo mostrar os trabalhos dos novos contemplados do programa Comissionamentos Inhotim, que convida artistas para desenvolver obras inéditas a partir de suas experiências com a instituição e com o seu entorno. Além de Rommulo, esta edição selecionou Lucia Koch e a sua "Propaganda", obra composta por intervenções em outdoors que trazem fotografias de caixas e embalagens vazias - algumas vezes, viradas do avesso - que a artista coletou em Brumadinho e em Belo Horizonte, em pontos como o Mercado Central.

Na citada sexta-feira, diante de sua obra e à imprensa, Rommulo deu início à sua fala pontuando algumas observações sobre a instalação que ele mesmo ressaltou serem "óbvias", por saltarem aos olhos já na primeira contemplação. "É uma obra super colorida. Pertence a uma série que venho desenvolvendo, na qual a cor é um elemento importante. Também considerei importante ter, aqui, a superfície brilhante. No que diz respeito às cores que utilizei para o trabalho, temos as primárias - vermelho, amarelo e azul  - e algumas outras, como verde, laranja e lilás. Em relação às formas, o trabalho traz algumas que provavelmente a gente vai reconhecer de algum lugar. De um modo geral, tenta exercer uma atração no público, que, assim, passa a querer 'adentrá-lo'". 

Rommulo explanou também sobre um ponto conceitual do qual partiu na elaboração do trabalho - a saber, os conceitos de espaço e de lugar, que ele inclusive considera estar se valendo como uma espécie de espinha dorsal na sua produção artística mais recente. "Eu entendo 'espaço' como algo indiferenciado, se pensarmos em termos de compreensão conceitual. Aqui (na área aberta do Inhotim onde estava com os jornalistas), por exemplo, é um espaço. Mas o espaço vai se transformando em um 'lugar' à medida em que vamos inserindo elementos com os quais nos identificamos, como na nossa casa, com os objetos que inserimos. A poética do trabalho que venho construindo é justamente essa fricção, essa coisa tênue que existe entre espaço e lugar", coloca ele. 

A obra de Rommulo no Inhotim reúne elementos arquitetônicos que ecoam uma miríade de referências, muitas de cunho religioso: são arcos, frontões, cúpulas nos moldes das islâmicas, domos judaicos, quartinhas... "Procurei embaralhar o lugar para observar como o visitante se comporta dentro dele. Muitos dos meus trabalhos trazem essas sobreposições de elementos arquitetônicos ou objetuais que resultam em uma composição com a qual você pode identificar algo pela familiaridade visual, arquitetônica, estética... Ou pela falta de estética, inclusive, já que alguém pode não gostar da obra e se afastar dela por aversão".

Aliás, ele não se furtou a inserir elementos passíveis de causar um certo desconforto no visitante, como uma grade. "A instalação, na verdade, brinca com dois caminhos: o que atrai, que é o que tem o apelo da cor, do brilho, das formas; e o que desafia, como a forma labiríntica e as barreiras. Porque quando o visitante adentra a obra, percebe que não é fácil passsar para o outro lado", discorre ele, que concordou com a observação de um jornalista, de que a instalação também remete o espectador à área de brinquedos de um parque infantil. "E o curioso é que, nelas (essas áreas), sempre há uma grade, eventualmente uma restrição. Ou seja, você pode mas não pode, tem liberdade e não tem. É como se fosse uma armadilha. Um (uma sistemática de) fluxo interrompido"

As quartinhas entram em cena fazendo menção às religiões de matriz africana, que, como Rommulo bem lembra, não se notabilizam tanto por aspectos arquitetônicos, mas sim por símbolos e elementos. Já os frontões, pontua, remetem às chamadas neorreligiões. "Curioso é que elas não lidam com uma proposição arquitetônica ou cultural: trabalham com apropriações, para se legitimarem. E, na verdade, nos dias atuais a gente também percebe esses frontões colocados como elementos nas fachadas de alguns shopping-centers, de algumas mansões. Como se fossem também uma legitimação daqueles lugares".

Na obra, um outro aspecto importante é que os elementos citados aparecem em verticalizações. "Porém, não estão sustentando nada - ao contrário, alguns estão sobre andaimes, eles as sustentando, dando a ideia de campo de construção, de um Brasil que a gente está pavimentando e para o qual precisamos saber o que queremos. Penso que estamos em um momento bem interessante para pensar sobre isso: o que a gente quer construir".

As barreiras já citadas por ele também conduzem a um ponto de reflexão. "Como eu disse, quando a gente começa a caminhar, não consegue passar para o outro lado, há algo que sempre está te bloqueando, como se a experiência da convivência em si não fosse tranquila. Ela te dá trabalho. Você tem que respeitar o bloqueio que está ali, então, para contornar, vai ter que pensar uma estratégia, por vezes pular alguma coisa. É preciso se posicionar em frente ao espaço que está sendo proposto. Se o bloqueio não é tão fácil, para atravessar é necessário achar um mecanismo".

Neste ponto, Rommulo reflete sobre os tempos vigentes de intolerância religiosa. "Vejam, eu não sou uma pessoa religiosa, acho que por isso consegui ter tanto desprendimento para lidar com esses elementos. Isso é importante falar: esse lugar de fala que todo mundo quer talvez eu não tenha, mas acho que, nesse caso, só desse lugar de fala que não se tem é possível se apropriar dessa forma mas descomprometida. No caso, comprometida com o significado arquitetônico e artístico dela (obra) no comportamento humano, mas não trazendo a carga religiosa". E prossegue: "Pelo fato de eu ser um negro, geralmente se espera que eu fale de uma cultura religiosa (de matriz) africana, que eu não tenho. Então, vamos falar sobre isso".

Lembrando episódios recentes, muitos deles reportados pela imprensa, nos quais espaços como terreiros de religiões de matriz africana foram invadidos e depredados devido à intolerância religiosa, Rommulo ressalta a importância de, no processo de erguer a sua obra, ter contado com operários de diversas orientações religiosas que, assim, passaram a conviver, mesmo que temporariamente, com elementos de outros credos, por vezes inclusive ditos como antagônicos, como pentecostais trabalhando com as quartinhas.

"Na verdade, existe toda uma construção de um pensamento de que a gente vai conseguir chegar com a arte em toda a sociedade periférica. Particularmente, entendo que nem sempre é possível. Como fazer, então? Penso que efetivamente na construção da obra. Veja, para erguê-la, eu preciso de marceneiro, serralheiro... Nesse caso em particular, muita coisa foi feita aqui mesmo, em Inhotim, mas com a possibilidade de contar com profissionais de fora desse espaço, para os quais, de outra maneira, a arte não chegaria (organicamente) em suas casas. Em toda a minha trajetória, tenho procurado trabalhar na periferia nesta etapa da construção dos trabalhos. Busco a serralheria mais periférica, para citar um exemplo. Alguns acabam dizendo: 'Acho que não vou conseguir fazer contigo'. Tudo bem, vou pulando para outros, e geralmente o que acontece é que os mais perifericos acabam por comprar a ideia e vão em frente. No processo, geralmente em algum ponto a pessoa pergunta: 'Ah, mas para quê serve isso?". Penso que aí acontece esse efeito forte que eu acho que a arte ainda possui, de agente transformador de uma sociedade. Acredito muito nisso, mas sendo feito aos pouquinhos. Tive essa experiência aqui, e não ficou longe da prática que já tenho - embora, dessa vez, dentro de uma instituição que conta com essa infra-estrutura incrível que o Inhotim tem. Mas envolvendo tudo isso que a gente está falando, essa possibilidade de a arte chegar a essas pessoas. Então, a arte que hoje está aqui passou pelas mãos deles (operários)".

 

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