Perfil

Rufo Herrera, um argentino de espírito mineiro

Radicado no Estado desde o fim dos anos 70, compositor, bandoneonista e educador tem seu nome ligado à cultura de Minas Gerais

Por Bruno Mateus
Publicado em 02 de abril de 2021 | 13:05
 
 
 
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Rufo Herrera, 87, ainda conserva o sotaque portenho, apesar dos mais de 40 anos vivendo em Minas Gerais. Bandoneonista, compositor e educador, o nome do argentino aparece — como criador ou incentivador — em vários projetos surgidos nesse período em Minas Gerais. Entre a música, o teatro e o audiovisual, ele construiu uma trajetória significativa na cultura mineira. Por telefone, ele conversou com o Magazine. Rufo passa os dias confinado por conta da pandemia, mas continua fiel ao estudo e às pesquisas do bandoneon, instrumento pelo qual se apaixonou ainda muito criança em Río Primero, no estado de Córdoba, onde nasceu. “Continuo compondo e buscando ideias para enfrentar a pandemia”, comenta.

No início de março, o argentino se reuniu virtualmente com os músicos Fernando Santos (contrabaixo) e Antônio Viola (cello), integrantes da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, para homenagear o centenário do compositor argentino Astor Piazzolla, uma de suas grandes influências e personagem decisivo para Rufo retomar o bandoneon em meados dos anos 80. Eles interpretaram “Adiós Nonino”. Esse foi seu trabalho mais recente e ele pretende, quando a pandemia for embora, realizar apresentações com o trio.

Mas, para falar de Rufo e Minas Gerais, voltemos a 1976. Naquele ano, ele ministrava cursos livres e extracurriculares na área da música contemporânea quando participou pela primeira vez do Festival de Inverno de Ouro Preto, fato que se repetiria nas edições seguintes, até ele fixar residência em Minas. No fim da década, já enredado à Fundação de Educação Artística (FEA), fundou o Grupo Oficcina Multimédia, companhia teatral ainda atuante.

Décadas depois, ele também participou da criação da Orquestra Ouro Preto, que completou 30 anos em 2020. “O Multimédia e a Orquestra são patrimônios, não deixam a peteca cair, estão na primeira linha enfrentando as dificuldades. Isso é Minas Gerais, é o contemporâneo”, comenta Rufo, que por muito tempo dividiu suas atividades entre Ouro Preto e Belo Horizonte.

Ex-professor de educação artística e musical UFOP, e Doutor Honoris Causa pela instituição, a contribuição de Rufo para a cultura mineira é marcante, assim como sua relação com o povo, os hábitos e um certo jeito de ser e enxergar a vida entre as montanhas. “Cheguei aqui e me associei na hora. Minas e Córdoba têm um espírito parecido. BH é muito latino-americana. Em espírito, me identifiquei com Minas Gerais”, pontua. “Aqui, a gente não abandona uma ideia, não joga ela fora. O mineiro tem paciência, segue até o fim. Isso é uma coisa rara e isso foi me ganhando. Vi que eu era assim também”, completa o compositor.

Autor de mais de 200 obras, Rufo Herrera é um artista-educador de múltiplas linguagens: compôs óperas, cantatas, bailados, peças de câmera, trilhas para teatro, inclusive para o espetáculo “O Último Carro”, de João das Neves, lançou quatro álbuns, ganhou prêmios, flertou com cinema, poesia e artes plásticas, viajou com grupos de teatro e música pelo interior mineiro, realizou cursos populares e pensou as artes de forma integrada, sempre com muito experimentalismo.

Hoje, com residência fixa em Belo Horizonte, continua suas pesquisas e participa, com seu bandoneon, de eventuais concertos. Ao fazer uma breve retrospectiva de seus mais de 40 anos radicado em Minas, Rufo Herrera é grato por tudo que viveu por aqui: “Consegui ajudar pessoas, vejo que isso frutificou na estrada da arte e da música. Também fui cuidado e respeitado. Acho que não podemos esperar muito mais da vida”.

Rufo e o bandoneon

A relação de Rufo Herrera com a música começou ainda na infância, em Río Primero. O pai tocava violão. Todas as noites, ele pegava o instrumento e improvisava algo de folclore argentino, até que um dia, como era tradição na família, três de seus dez filhos se reuniram para tocar em uma reunião caseira por conta de algum feriado. Rufo, o caçula, tinha cinco anos. Foi a primeira vez que ele viu um bandoneon. Era inverno, fazia frio, mas o menino não arredou pé. “Fiquei ali a noite toda, não conseguiam me levar para dormir. Fiquei com isso na cabeça. Naquele momento, decidi que esse era meu instrumento”, recorda o compositor.

E realmente foi. Aos nove anos, os pais inscreveram Rufo em uma academia de música. Aos 10, ele já tocava em público. Passeando entre o folclore e a música popular, o argentino começou sua carreira profissional aos 16, em uma orquestra típica de tango. Dali em diante, a música passou a ser seu ganha pão e Rufo se mudou para Buenos Aires a convite de uma orquestra. Foi uma época de muitos shows, turnês e reconhecimento. No fim dos anos 50, porém, a ditadura militar argentina mirou o tango. O gênero e as orquestras foram perseguidos, muitos músicos deixaram o país e os trabalhos minguaram. 

Mas Rufo Herrera não queria largar a música e saiu pela América Latina a trabalhar. Venezuela, Peru, Bolívia… até chegar a São Paulo, em 1963. No ano seguinte, ele já havia se estabelecido e vivia viajando, fascinado com a efervescência cultural no país, quando foi pego de surpresa, como o músico lembra: “Estava no meio de uma turnê e, de repente, escutei na rádio sobre o golpe de Estado. Caí de novo nisso, pensei”. O compositor saiu de uma ditadura militar para entrar em outra: “Você se sentia vigiado, observado e perseguido o tempo todo. Se tinha um grupo de cinco pessoas, duas podiam ser dedo-duro”.

Os anos seguintes foram de muitas descobertas para o argentino, envolvido sempre com música contemporânea e educação. Ele passou por São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia até que, naquele 1976, o convite da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) fez com que ele colocasse Minas Gerais de vez na sua vida.

Em BH, encontro com Piazzolla e o reencontro com o bandoneon

Em Minas Gerais, Rufo Herrera passou um tempo desligado do bandoneon, instrumento que fez seus olhos brilharem naquela noite fria do inverno cordobês. Essa separação começou a ser repensada em 1986, no Palácio das Artes, e teve o genial bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla como provocador dessa história. Piazzolla estava em BH para um concerto. Em uma das conversas com Rufo, ele comentou que estava acompanhando os trabalhos do compatriota e, a certa altura, lançou a pergunta: e o bandoneon? “Aí tive que abaixar a cabeça e falar que tinha largado. Ele não comentou nada, mas fez uma cara”, conta.

Após essa ocasião, Rufo teve acesso ao livro “Che Bandoneón”, no qual o autor Renato Modernell questionou Piazzolla se ele via alguém habilitado a continuar o trabalho dele. “Ele respondeu: ‘os caras que continuaram estudando e que poderiam compor tanto quanto eu largaram o bandoneon. Tomei a frase como se fosse para mim, aí retomei o bandoneon”, comenta o músico, que, à época, formou o Quinteto Tempo, com o qual lançou dois álbuns, “Tocata Dell Alba” (1995) e “Toda Música” (1999).

A relação com o bandoneon segue bastante próxima e de muito estudo e respeito. Rufo Herrera diz que é um instrumento especial e que sempre há algo para ser descoberto. “Ele tem quatro teclados. Até você se familiarizar com qualquer instrumento demora um pouco, mas você está olhando para suas mãos, isso ajuda. Com o bandoneon, não… Ele deveria ter sido feito para um homem de duas cabeças”, diz, com bom humor e indisfarçável sotaque argentino. 

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