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Tatiana Salém Levy descreve o desafio de ficcionalizar um caso real de estupro

A escritora, que hoje mora em Portugal, conversa sobre o seu recém-lançado livro Vista Chinesa nesta quinta, às 19h

Por Patrícia Cassese
Publicado em 24 de junho de 2021 | 03:00
 
 
 
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Ao ser desafiada a calcular a porcentagem de ficcionalização que a narrativa do livro "Vista Chinesa" (Todavia) encerra, considerando-se que a inspiração veio de um triste episódio real, a escritora Tatiana Salem Levy nem titubeia. "Vou dizer que 100%. Porque é um romance, um livro de ficção - e, para mim, o que define ficção não é se os fatos aconteceram ou não, mas a forma como vou contá-los, a narrativa", explica a escritora brasileira, nascida em Portugal, onde, aliás, está radicada atualmente. Os fatos reais, no caso, dizem respeito a uma das mais covardes e cruéis (se não a mais) formas de violência praticadas contra uma mulher: o estupro. 

O episódio verídico ocorreu em meados de 2014, na estrada localizada no Alto da Boa Vista, que leva a um dos cartões-postais do Rio de Janeiro, o mirante da Vista Chinesa citado no título. Naquele dia, Joana, amiga de Tatiana, havia resolvido correr no caminho quando foi atacada por um desconhecido, arrastada para dentro da mata e estuprada. No livro, o horror daqueles momentos e a via-crúcis que teve início na sequência (do conseguir sair da mata à chegada em casa, passando pela ida à delegacia, à reação da família, às tentativas de reconhecimento do estuprador) são narrados pela personagem construída por Tatiana, e que se chama Júlia.

"Pra mim, sempre fui muito claro que (a transposição do que aconteceu com a amiga) seria um romance", diz Tatiana. "É uma carta, imaginária, que não está sendo entregue para os filhos. Que tem uma estrutura completamente fragmentada. O que me interessava era elaborar, pensar, realizar, experimentar de que forma a literatura poderia dar conta dessa experiência invisível, dessa experiência do horror. Acho que um simples relato não daria conta. Uma narrativa mais biográfica, mais jornalística, não daria conta. Pra mim, não dá conta. Por isso me interesso pela literatura, porque acho que ela consegue se aproximar mais dessas experiências indizíveis... dizendo. Dizendo. Eu queria tentar explorar a linguagem de forma a fazer com que as palavras conseguissem dizer alguma coisa desse indizivel", explana.

Aqui, uma parada necessária. A amiga da autora é Joana Jabace, diretora de televisão, nome por trás da irretocável série “Segunda Chamada”, e mãe dos gêmeos Francisco e José, de 3 anos, frutos do seu casamento com Bruno Mazzeo - aliás, foi ela a dirigir, durante a pandemia, o também ótimo "Diário de um Confinado" (as duas temporadas), protagonizado pelo marido, e com Deborah Bloch (que mora no mesmo prédio que o casal), Renata Sorrah e Letícia Colin, entre outros não menos importantes, no elenco. Hoje com 40 anos, Joana não só se disponibilizou a narrar para a amiga, com detalhes, o ocorrido - mesmo que, como enfatiza a autora, no livro, mais que as feridas profundas, convivesse com as da superfície, "ainda muito abertas e muito vivas" - como, ao fim do processo, quis que ela revelasse, sim, o seu nome para os leitores. "Não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade - e que aconteceu comigo, Joana Jabace", escreveu a diretora. 

 O livro foi concluído no ano passado (lançado em março deste ano), mas, na verdade, a ideia brotou bem antes, mais precisamente em 2015, quando Tatiana Salém Levy conheceu, em uma exposição, a série "Os Inocentes", da fotógrafa norte-americana Taryn Simon, que retratou pessoas condenadas por crimes que não tinham cometidos - e que foram reconhecidas por meio fotografias. "Pessoas que tinham ficado, injustamente, dez, 15, 20 anos presas. E, na maioria, eram negros, pessoas mais pobres, às vezes descendentes de indígenas - no caso, dos EUA, mas poderia ser no Brasil. Isso me lembrou muito o que a Joana tinha passado". 

Esse ritual (de ir à delegacia) também está na obra, quando Tatiana narram as vezes nas quais Júlia é convocada para tentar fazer o reconhecimento de seu algoz - e, muitas vezes, tratada com impaciência por não conseguir apontar com precisão o suposto autor. "Então, existe, na narrativa, um crime maior, que é o estupro, mas você também tem as outras injustiças: tem uma polícia que não sabe acolher essa vítima de violência sexual, a polícia que quer incriminar alguém de qualquer maneira - e a maioria dessas pessoas (que são incriminadas) é negra", repudia. 

Mas se a decisão de contar esse episódio atravessado pelo prisma da ficção foi tomada em 2015, a primeira gravidez de Tatiana acabou postergando todo o processo. "Quando engravidei pela primeira vez, de um menino, adiar a escrita foi uma coisa consciente. De não querer mesmo escrever sobre um estupro, uma violência tão pesada, estando grávida. Porque quando a gente está escrevendo, mergulha na dor. Eu, pelo menos, vivo aquilo quando estou escrevendo. E falei: 'Ah, não, eu não quero mergulhar (nesse episódio) estando grávida, porque não quero passar esse sentimento para o bebê que está dentro de mim'. E, na sequência, amamentando, também não queria isso", admite. 

Depois, na segunda gravidez, desta vez de uma menina, a vontade de escrever veio de maneira inconsciente. "No sentido de algo até meio selvagem, no sentido de ser instintivo, um desejo. Isso, a decisão veio mais da ordem do desejo do que da consciência. Não foi uma coisa pensada assim: 'Agora vou ter uma menina, então preciso fazer um manifesto, porque preciso mudar o mundo, preciso que o mundo esteja melhor pra ela'. Foi uma coisa mais animalesca. E tinha a força de estar escrevendo junto com ela, com essa bebê, de fazer aquilo junto". 

Mesmo assim, Tatiana se lembra de ter ouvido comentários que discutiam a sua decisão. "Às vezes, as pessoas diziam: 'Você é maluca, está escrevendo sobre esse tema grávida'. Mas, dessa vez, eu sentia força. Não sentia que estava passando uma coisa ruim (para a bebê). E acho que tem a ver com essa coisa dessa comunidade das mulheres, de escrever junto, como se ela (a filha) fosse mais uma mulher juntando a voz, a mão ou o corpo nesse projeto, digamos assim".  

É exatamente essa sensação de sororidade que ela enxerga no evento no qual participa hoje. "Essa iniciativa ajuda a desconstruir a lenda de que as mulheres são rivais das mulheres. Mostra justamente o contrário, como elas sabem dar as mãos a outras mulheres e trabalharem juntas, sendo companheiras e fortalendo umas às outras, em vez de diminuírem ou invejaram ou rivalizarem com outras mulheres. É um projeto que mostra como uma mulher pode potencializar a outra, crescer com a outra, tem essa ideia da rede de mulheres, de uma comunidade de mulheres", exulta.

O evento vai acontecer de forma virtual, com acesso gratuito pelo canal youtube.com/juliamedeiros 

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