No inferno concebido pelo diretor Marcelo do Vale, o que alimenta não é o pão que o diabo amassou. Barrinha de cereal e água são os únicos itens do cardápio destinado a quem já foi dessa para uma melhor.
No espetáculo “Os Outros”, que a Funarte recebe até o próximo domingo, as chamas que ardem são morais e emocionais.
Sim, estamos no inferno, mas segundo a concepção de Jean-Paul Sartre. “O inferno são os outros”, sentenciou o autor – uma frase que entrou para a história. O espetáculo, portanto, é uma adaptação do texto “Entre Quatro Paredes”, do filósofo existencialista.
Em cena, os atores Gustavo Marquezini – também produtor –, Diego Krisp e Fabiane Aguiar interpretam os três personagens que morrem e descobrem que estão no inferno. Mas a grande penitência que terão que suportar será conviver entre eles, cada qual com suas vaidades e egolatrias, delineadas em personalidades bastante fortes. “Estamos vivendo o inferno o tempo todo. Inferno é o que a gente viveu e não conseguimos voltar atrás. É o julgamento do outro”, reflete Marquezini.
A intenção, no entanto, é atualizar o que Sartre propôs quase 70 anos atrás. Duas mulheres e um homem constam no texto original, mas aqui a escalação é invertida. Marcele é uma escritora covarde, Estevão é um burguês e João Vitor é um gay que trabalha nos Correios. Eles sim são os endiabrados.
Trazer questionamentos filosóficos para nossos tempos atuais tem conquistado as plateias locais. A montagem estreou ano passado como uma cena curta durante o Festival de Teatro Mínimo, e encerra sua segunda temporada neste fim de semana. “Conseguimos quebrar essa ideia de que algo filosófico é chato”, avalia o ator.
Esse ímpeto de refletir sobre a própria existência, algo do ser humano, acaba ganhando contornos ainda mais complexos numa sociedade dominada pela tecnologia. “Qual inferno você vai criar para você? Ou talvez o paraíso?”, filosofa Marquezini.
A melancolia, algo tão presente no texto de Sartre, é um resultado possível, segundo propõe a peça. Sozinhos naquele cenário um tanto inóspito, cada personagem exibe em sua roupa um QR code, um código de barras que pode ser escaneado por telefones celulares. De novo, a tecnologia nos atolando em solidão. “Muitas vezes somos manipulados e nem damos conta disso”, questiona o produtor.
Mas como é preciso usar a tecnologia a nosso favor, ao chegar ao teatro o público pode acessar um QR code e ler textos sobre os personagens.