Crônica

‘The Beatles: Get Back’ e um presente para o menino de 12 anos

Série documental de Peter Jackson é obra-prima que mostra o lado humano e criativo de um fenômeno pop que atravessa gerações

Por Bruno Mateus
Publicado em 29 de dezembro de 2021 | 13:21
 
 
 
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Era uma tarde de dezembro de 1995. O céu sugeria forte chuva, dessas que caem de repente por aqui e pegam os desatentos de surpresa. O menino estava em uma loja de artigos esportivos nos arredores da Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte. Em férias, tinha ido à região comprar um short e um meião do Cruzeiro, presentes de Natal que ganhara de sua mãe. Ele foi com a tia Vanessa, que ficou envergonhada por não saber preencher o cheque que Mércia havia assinado.

Antes de deixar a loja, algo chamou a atenção do menino, e não foi nenhuma camisa azul estrelada. Seus olhos brilharam como se estivessem diante da revelação de todos os segredos do Universo. A TV mostrava uma matéria sobre o lançamento de “Anthology”, a nova série dos Beatles. “Anthology” reuniu Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr 25 anos depois da separação da banda. John Lennon, morto a tiros pelo canalha Chapman naquele 8 dezembro de 1980, apareceria em entrevistas e depoimentos inéditos. A voz de Lennon seria trabalhada e restaurada com a tecnologia disponível na época e os outros três gravariam duas novas canções aproveitando os vocais de John: “Free as a Bird” e “Real Love”, lançadas também em videoclipes.

“Anthology” foi exibida pela Globo em cinco capítulos, entre os dias 11 e 15 de dezembro. Só que o menino não viu, sabe-se lá o motivo. Ainda assim, aquela matéria na TV lhe bateu como um sinal, um aviso e um despertar de consciência. Ele já conhecia John, Paul, George e Ringo, os pais adoravam os Beatles, “Abbey Road” sempre rodava no toca-discos do apartamento da rua Campinas e a tia Bebeth tinha escrito na capa de “Please Please Me”: “Para meus sobrinhos curtirem o rock adoidado”. A tinta da caneta azul ainda está lá.

O encontro definitivo do menino com a música dos Beatles aconteceu então nos primeiros dias de 1996. Em janeiro daquele ano, o pai, professor de matemática, voltou do interior de Minas, onde lecionava cursos de férias, trazendo na bagagem o CD de “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”. O garoto entrou, com seu corpo adolescente e magricelo, de cabeça, alma e coração no irresistível em um novo mundo. Pirou. Adorava gravar K-7’s com suas músicas preferidas. “Jai guru deva, om… Nothing's gonna change my world” era um mantra que fazia muito sentido para ele.

O tempo passou. O garoto fez dos Beatles a trilha sonora de sua vida, e os Beatles fizeram a cabeça do menino. Ele comprou discos, livros, camisas, descobriu a década de 60, a contracultura, Dylan, o rock and roll, a literatura, Stones, os hippies, Woodstock... Em 2001, com o ímpeto juvenil de seus 18 anos, saiu bêbado de uma festa e foi ao saudoso Pau e Pedra ver um show da Sgt. Pepper Band, banda sobre a qual ele tanto ouvira falar. Também em 2001, escutou repetidamente “Let it be”, CD que sua mãe comprou naquele 29 de novembro, dia em que chorou e sentiu como um direto no peito a morte de George Harrison.

O menino cresceu, tatuou uma caricatura de Lennon, virou adulto, viu Paul e Ringo ao vivo, pensou em viver na portuária Liverpool e ficou cada dia mais fascinado pela história desses quatro caras que, juntos, tinham (e ainda têm) tanta força e beleza.

Alguns anos depois: “Get Back”

Não faz muito tempo que o garoto soube da grande novidade: um documentário sobre os Beatles seria lançado. Ansioso, esperou, mês após mês, que o filme chegasse às plataformas de streaming. A pandemia adiou a estreia uma, duas vezes, mas a história é a seguinte: Peter Jackson, o cineasta à frente da trilogia de “O Senhor dos Anéis”, recebeu um precioso material inédito, gravado em três semanas de janeiro de 1969 por Michael Lindsay-Hogg, o diretor de “Let it be”, filme lançado no ano seguinte.

Jackson tinha em mãos mais de 60 horas de imagens e 150 horas de áudio. Uau. Sessenta horas de imagens inéditas dos bastidores dos Beatles enfurnados no estúdio. A repercussão causou alvoroço na imprensa e nas redes sociais. O projeto ganhou o título de “Get Back”, mesmo nome daquela música que pede para Jojo e Loretta voltarem para o lugar de onde vieram, a faixa que fecha o disco “Let it be”. Fatiado em três episódios, “The Beatles: Get Back” estreou no fim de novembro na Disney+. E o menino sentou para ver o documentário como se fosse sábado.

O primeiro capítulo revela como as coisas andavam tensas e caóticas entre a banda. Fazia um frio danado em Londres. Os Beatles ocuparam o nada aconchegante Twickenham Studios, em Londres, tentando compor um novo disco, tentando arranjar suas músicas, tentando se entender, tentando chegar cedo ao trabalho, tentando voltar aos tempos de uma música menos complicada, tentando não enlouquecer com tantas câmeras invadindo as sessões, tentando, tentando, tentando… Atento a todos os detalhes, sorrisos e descompassos, o menino curioso entrou no estúdio com os Beatles no maior reality show musical de todos os tempos.

“Get Back” seria um show? Um álbum? Um especial ao vivo para a TV? Tudo estava indefinido, o tempo passava, o trabalho não fluía e isso desgastava cada vez mais a relação entre a banda. Entre tantos desencontros, cada um jogava para um lado: John, alheio aos compromissos do grupo, estava em seu mundo particular com Yoko, figura onipresente nas gravações; George, cansado de ser escanteado por John e Paul, era só mau humor e desgosto, tanto que chega a sair da banda; Ringo, resignado, só queria tocar e acabar rápido com todo aquele esquema montado; e Paul, por fim, assumiu a ingrata missão de liderar e cobrar disciplina dos marmanjos.

Se o primeiro capítulo é pesado, depressivo, arrastado, um poço de discussões e picuinhas, o que vem a seguir é lindo e brilhante, sobretudo porque o que sobressai nos episódios dois e três é o processo criativo do grupo, exibido de uma maneira nunca antes vista. Tratando-se do maior fenômeno da música em todos os tempos, isso tem o peso histórico de um importante descobrimento.

Tudo muda quando os Beatles abandonam Twickenham e armam acampamento nos estúdios da Apple, montado de última hora para receber o grupo e sua equipe de produção. Eles saem da escura, longa e sinuosa estrada e veem o sol nascer, derreter lentamente o gelo e as mágoas que impediam a criação e fazer os sorrisos voltarem aos seus rostos. Aí o que o garoto vê é a música em estado puro. Ele se diverte com John, Ringo, George e Paul tocando rocks antigos, parodiando e sacaneando suas próprias canções. Ele se encanta ao perceber os olhares cúmplices de Lennon e McCartney, sentados sempre um de frente para o outro, e apura os ouvidos quando George diz: “Querem ouvir a canção que escrevi na noite passada? É curtinha”. E Harrison começa a tocar “I me mine” na guitarra de Lennon.

Com os olhos vidrados na TV, o menino se empolga quando o grande Billy Preston entra na jogada como um legítimo quinto Beatle, sem saber que a banda precisava de um tecladista. Preston estava em Londres para gravar um comercial e resolveu visitar o estúdio. Ele e os Beatles se conheceram em Hamburgo, quando o tecladista excursionava com a turma de Little Richard. A presença do jovem Preston é fundamental para que John, George, Ringo e Paul deixem animosidades de lado e se dediquem somente à música. “Don’t Let Me Down”, “Get Back” e “I’ve Got a Feeling” não seriam as mesmas sem os dedos de Preston.

Ver as músicas ganhando forma e sendo compostas pouco a pouco foi demais para o garoto, que se sentia parte daqueles dias londrinos. Quando os Beatles trabalham verdadeiramente juntos o resultado é fantástico. Várias faixas que entrariam em “Abbey Road” começaram a ser mostradas ali. “Another day”, “Gimme some truth” e “All things must pass” já aparecem em janeiro de 69. Não aproveitadas, elas se tornariam músicas das carreiras solo de Paul, John e George. A confessional “Jealous Guy”, de Lennon, surge em seus primeiros esboços como 'On the road to Marrakesh”.

“Get Back” vai mostrando o dia a dia dos Beatles até chegar ao gran finale. Após muito ensaio e trabalho duro, eles estavam prontos para tocar algumas canções. Ali, no telhado do prédio Apple, quatro jovens de menos de 30 anos, com o mundo na palma das mãos, apareceram para o show surpresa que parou as ruas de Londres e fez os telefones da delegacia mais próxima tocarem incessantemente. Eram os vizinhos reclamando do barulho.

O trânsito virou um inferno, as pessoas nas avenidas comerciais paravam para escutar o som que vinha lá do alto. Os policiais apareceram para acabar com a música, mas foram enrolados e ficaram por ali entre o constrangimento e a total inabilidade em lidar com a situação. Sortudos, foram testemunhas da última aparição ao vivo dos Beatles. 

Ao passar por todos os minutos de “Get Back” com o mesmo brilho nos olhos de seus 12 anos naquela tarde de dezembro de 1995, o menino recebeu o filme de John, George, Paul e Ringo como um presente. Agora, com seus quase 39, ele termina estas linhas na madrugada desta quarta-feira, 29 de dezembro. Antes, vai até o quarto e olha Amora se remexer no berço e entoa baixinho e pausadamente uma canção de ninar para sua bebê de cinco meses. “Sleep, pretty darling, do not cry. And I will sing a lullaby.” E outras canções hão de pintar por aí. Porque essa é uma história que nunca terminará de ser cantada. 

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