Fã de carteirinha de Maria Bethânia, que inclusive participou de seu disco dedicado a Carlos Drummond de Andrade, Thelmo Lins se flagrou, tempos atrás, com vontade de escutar uma das poucas incursões da intérprete baiana no mercado fonográfico que ele não tem em sua discoteca física: o álbum "Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo" (Phillips), registrado na extinta casa de shows Canecão, no Rio. "Senti saudade dele e resolvi ouvi-lo em uma plataforma digital", conta. As emoções suscitadas desde a primeira audição foram retomadas com sucesso, mas, ao contrário das anteriores, desta vez Lins não se deixou guiar apenas pela emoção: entrou em campo disposto a buscar todas as informações possíveis sobre o álbum, como sua gênese, seu processo de feitura e afins. "Encontrei até uma reportagem da época do lançamento (1975), contendo entrevistas com o Chico Buarque, a Bethânia e outros integrantes da equipe, como o diretor, por exemplo". De todo esse mergulho veio a a constatação do quanto muitas letras compostas em tempos duros como aqueles (ainda sob a égide do regime militar) ainda soavam atuais. Mas foi principalmente de uma conexão espiritual que veio o desejo de colocar esse repertório em repasse.
Nascia, assim, o espetáculo "Vai Levando", que Thelmo dividiu com a cantora Letícia Garcia. Gravado no palco do Teatro Santo Agostinho, no início de setembro (sem plateia), o registro está, agora, disponível no YouTube.
Voltando ao embrião da empreitada, ou seja, ainda na fase do reencontro com o repertório do citado (e antológico) show, Thelmo conta que antes de dar início à audição do registro por completo, a primeira canção que prontamente tinha vindo à sua memória era “Olê, Olá”. "Não chore ainda não, que eu tenho um violão, e nós vamos cantar...", diz um trecho da composição de Chico Buarque, que a memória do mineiro puxou em meio à quarentena. "Esses versos ficaram se repetindo na minha cabeça, insistentemente, nesses dias de clausura. A partir de então, revi o repertório e achei que ele se casava perfeitamente com o momento que vivemos atualmente, de grandes turbulências sociais, econômicas e políticas".
Para o artista, o Brasil daquela época, em plena ditadura militar, vivia uma desesperança parecida com a que vivemos atualmente, "quando achamos que as nossas instituições perderam o rumo". As canções, no entanto, não são desesperançosas, ressalta Thelmo. "Pelo contrário, buscam uma energia positiva para enfrentarmos o momento e criarmos um país melhor". Um Brasil que, acrescenta Thelmo, produziu uma número incontável de canções belíssimas. "E uma arte que é reverenciada pelo mundo inteiro não pode ficar refém desse desatino atual. Resumindo: o mote é mostrar nossa insatisfação, mas com arte e beleza".
Sobre sua companheira de empreitada, Thelmo conta que conheceu Letícia há um ano. "Ela e o seu marido, Daniel Rodrigues (que foi o nosso diretor musical), nasceram no Rio de Janeiro - ela, no interior; ele, na capital. Mudaram-se para Itabirito (minha terra natal), onde desenvolvem um trabalho musical muito bonito. A gente teve uma identificação imediata. Planejávamos alguma parceria, sem saber exatamente qual. No princípio deste ano, cheguei a bloquear uma data para o lançamento deste show, mas a pandemia veio e nos obrigou a fechar o teatro (sou administrador do Teatro Santo Agostinho, onde o show foi gravado). Assim, restou-nos retomar a ideia, por meio de uma gravação, pois achávamos que uma live não teria a mesma qualidade desse registro".
O artista revela que Letícia e Daniel, por conta da idade, não conheciam tão bem todo o repertório do álbum. "E foi muito interessante observar essa descoberta e o envolvimento deles. São artistas jovens, de outra geração, mas que apreciam a MPB", pontua ele, acrescentando que os envolvidos também convidaram a pianista Júlia Carvalho, 22, expoente que, alerta ele, ratifica o talento da nova geração itabiritense. Para completar o elenco, o tarimbado Evaldo Milagres se incumbiu da percussão. "Evaldo já é um músico de minha geração, com larga experiência internacional".
Indagado sobre os possíveis desdobramentos do espetáculo, Thelmo é prudente. "A repercussão de um show de artistas que não são tão conhecidos da mídia é um trabalho de formiguinha. Estreamos o show na TV Universitária, o que facilitou o seu alcance e, depois, levamos para a internet (YouTube). Pretentemos, agora, dividi-lo em clipes de canções, no intuito de facilitar para as pessoas que não têm paciência de assistir a um show inteiro no vídeo. Para mim, como produtor e idealizador, o projeto possibilitou que, pela primeira vez, eu dominasse todo o processo, inclusive da gravação dos áudios, da filmagem e edição do vídeo. Assim, pude realizar um projeto com minha digital. Futuramente, queremos levar o show ao vivo para outras plateias, com certeza. Ficou enorme um gostinho de 'quero mais'”, admite.
Mesmo porque, o feedback tem sido permeado pelo afeto. "Todos que assistem mandam mensagens encantadoras, relatando sua emoção, sua alegria de assistir ao espetáculo. Elogiam as performances e a qualidade do vídeo. Sem dúvida, estávamos em um momento iluminado. Todos tocando e cantando bonito, como se fosse o último show da vida! (risos")".
Em tempo: no show, os dois intérpretes optaram por gravar "Tanto Mar" já com a letra, ao contrário do disco. "Esse jornal (citado no início da conversa, o qual ele consultou) também publicou a letra de 'Tanto Mar', manuscrita por Chico. A letra seria proibida pela censura, pois tratava da Revolução dos Cravos, em Portugal, que havia acontecido naquela época. A canção foi para o disco original em formato instrumental. No nosso show, cantamos com a letra original e a letra que o Chico fez anos depois, quando finalmente pode gravá-la. Na edição do vídeo, eu inseri este documento".
Tempos de pandemia. Assunto inevitável nas entrevistas que foram, são ou serão feitas este ano, Thelmo conta que tem sabido utilizar o isolamento social de uma maneira benéfica para ele, apesar de ter sofrido um revés e tanto. "O ano de 2020 está sendo muito doloroso. Perdi minha mãe em fevereiro e, um mês depois, estava isolado dentro de casa, com meus trabalhos cancelados ou adiados. Perdi renda também". Para não sucumbir à tristeza, tratou de aproveitar este hiato para investir em outros conhecimentos, como a melhoria do processo de gravação e edição de vídeos. "Também estudei fotografia e, mais recentemente, restauração e colorização de fotos. Essas novas áreas abriram minha cabeça e me levaram para outras possibilidades que eu não conhecia. Cheguei a produzir três videoclipes para o cantor Wagne Cosse, sendo dois deles inteiramente dentro de casa. E criei as Histórias do Gatinho Lulu, projeto de leitura de livros infantis para crianças, que já têm 11 videos gravados. Particularmente, em minha vida pessoal, adotei dois gatinhos – Lulu e Floyd – que não me deixam cair na tristeza e estão sempre espalhando carinho e alegria pela casa", confidencia.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista com Thelmo Lins.
Que sentimento te invadiu ao constatar esse diálogo que você assinalou, do repertório daquele disco/show de 1975 com os tempos atuais? Primeiramente, queria falar da constatação de que estamos fazendo um show gravado em um teatro, sem público, num momento em que nos é exigido o distanciamento social. É bem pragmático. E o artista, principalmente aquele que vive de suas performances ao vivo, foi muito prejudicado pelo distanciamento social. Naquela época, em 1975, artistas como Chico, Caetano, Bethânia, Gil, Gal, dentre tantos outros, conseguiam, com seu talento, mobilizar uma parte da população brasileira. Acho que isso se diluiu nos tempos atuais, quando a indústria fonográfica praticamente morreu e as vozes mais incisivas não têm o mesmo espaço e a relevância do passado. Muitos, aliás, são daquela mesma geração. Hoje a sociedade está mais multifacetada e a internet e os meios digitais dividiram as pessoas em nichos e algoritmos, fazendo com que perdêssemos um pouco a unidade nacional e o sentido da evolução da arte, como havia no encadeamento do samba, samba-canção, bossa nova, Tropicália, Clube da Esquina, etc. Hoje não sabemos qual é o rumo. Estamos um pouco perdidos e atirando para todos os lados. E, infelizmente, a arte ou a criação artística é muito desvalorizada pelos atuais governos, como nunca tinha sido antes. Os artistas viraram párias na política, mesmo que o nosso cotidiano (presos dentro de casa) valorize a sua importância, pois estão conseguindo aliviar as dores e perdas dessa pandemia.
Queria que filtrasse, a seu bel-prazer, duas ou três músicas do repertório, para falar sobre elas - de repente, se alguma se conecta à sua memória afetiva, ou mesmo da importância histórica dela. Começo por “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, que abre o nosso show. E uma música que se tornou um clássico, por falar de um tema tão persistente na nossa sociedade que é a solidão e o distanciamento. Imagine neste momento, em que muitos estão presos em suas casas, tendo contato com o mundo somente pelas redes sociais... A canção fala do desencontro, da pressa, da desatenção, da falta de concentração, que são características também dos nossos dias. Quando dividimos quem iria cantar o quê, de uma maneira aleatória e até por gosto musical, criamos um bloco para a Letícia que marcava toda uma trajetória da busca da mulher por sua identidade e ocupação no mundo. Letícia achou, a princípio, que era um repertório machista, até que compreendeu que todas aquelas canções cumpriam o triste ritual das mulheres na sociedade brasileira. Na pandemia, muitas delas, sofreram com abuso e maus tratos, que são tratados em canções como “Com açúcar, com afeto” e “Sem açúcar”, ambas do Chico. Então, o bloco se transformou em uma espécie de protesto. Por fim, ressalto a trilogia do espetáculo “Gota d´água”, que interpreto na minha parte. Em 1975, o espetáculo ainda não havia estreado, e essas canções (“Flor da idade”, “Bem querer” e “Gota d´água”) foram mostradas em primeira mão naquele encontro do Chico com a Bethânia. São canções fortes que posteriormente foram regravadas e que transformaram a carreira de Bibi Ferreira, que interpretou o papel principal da peça. E, para não dizer que não falamos das flores, terminamos o show com três lindas canções carnavalescas, mostrando que tudo ainda tem solução, apesar de estarmos “levando” a vida de uma forma muito peculiar e extraordinária.
Sobre o registro
São 55 minutos, divididos em uma abertura, três atos e um interlúdio. Os cantores fazem solos e duetos, passeando por canções marcantes, de autores como o próprio Chico Buarque (“Olê, olá”, “Sem fantasia”, “Com açúcar, com afeto”, “Tanto Mar”, “Gota d´Água”, “Noite dos Mascarados”, dentre outras), Lupicínio Rodrigues (“Foi Assim”), Paulinho da Viola (“Sinal Fechado”), Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho (“Cobras e Lagartos”) e Herivelto Martins (“Camisola do Dia”). Caetano Veloso assina uma parceria com Chico Buarque – a única, aliás, das suas carreiras, que dá nome ao show: “Vai Levando”.
A coordenação de filmagem ficou a cargo de Bruno Rezende. Rogério Delayon, por meio do Estúdio Toca de Leão, fez a gravação e mixagem do áudio. A edição de imagens é de Thelmo Lins. O show foi iluminado por Júnior da Mata e teve o técnico Marlon Oliveira à frente da sonorização. O registro fotográfico foi de Wagner Cosse.
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