Dentro de 30 anos não haverá mais relação sexual direta, apenas por telefone. O cenário para 2049, que parece distópico e tenebroso, foi o que moveu Vanessa da Mata a compor “Nossa Geração”, música de seu mais recente disco de inéditas, “Quando Deixamos Nossos Beijos na Esquina”, cuja turnê chega hoje a Belo Horizonte.
Ao ler numa revista a pesquisa com a pessimista previsão, Vanessa constatou, perplexa, que o número de jovens que não namoram só tem aumentado. “E não é só nas grandes cidades brasileiras, nos interiores do país também. Na Europa, muitos já não transam. A relação sexual corpo a corpo está acabando. Temos uma juventude que não se toca mais”, observa.
No decorrer da letra, a compositora desfia sua lírica poética a fim de tentar dar conta de uma realidade desoladora: “Nossa geração não se beija mais/ Foram doutrinados a achar sujo/ Nossa geração mata o diferente/ Padronizam frutos, flores e gente”. A canção não é a única que aborda as conturbadas relações contemporâneas, principal mote do álbum.
“Vejo o povo dizer/ Que perdeu um amor/ Que quando estava lá/ Só rimava com dor/ Isso não é perda/ Isso é livramento”, canta a intérprete em “Vá com Deus”. Segundo a artista, a faixa foi inspirada em um caso real. “Vi um casal ligado por desamor. O orgulho fazia com que eles ficassem juntos para maltratar um ao outro e ver quem ganhava”, conta.
“Essas atitudes me assustam, as pessoas estão se matando por falta de estrutura emocional, fazendo atrocidades para manter o parceiro, com chantagens vis, do tipo ‘vou me matar se você me deixar’ ou ‘me dê um filho a qualquer custo’”, completa. Não por acaso, “Hoje Eu Sei” coloca na mesa o amor-próprio e sua premente necessidade.
“A gente precisa saber escolher e não achar que a solidão é um problema nosso. O mundo anda muito solitário, as pessoas não conseguem se adaptar umas às outras e esperam muito das relações, o que gera uma desilusão interna, que, cada vez mais, afasta todo mundo”, lamenta. Na gênese de todas essas questões, aparece uma bandeira que a cantora levanta há décadas.
“A liberdade sexual feminina e a de gênero são urgentes. Durante muito tempo, a mulher não pôde falar, com uma ou outra exceção, como Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Rita Lee e Dona Ivone Lara. A gente cantava o que os homens compunham”, aponta ela, que, nesse sentido, vê a cena atual com otimismo.
“Hoje, temos ótimas compositoras, com crônicas acirradas, panfletárias e incisivas, que colocam o dedo na ferida de uma sociedade injusta e misógina, que insiste em silenciar sobre estupro e pedofilia. Esse machismo estrutural produz assassinos, o mundo está tomado de ódio. Essa é uma doença da nossa sociedade que precisa ser discutida sempre”, afiança.
Romance
Vanessa define o atual álbum como “extremamente discursivo” e repele os que insistem em vê-la apenas como uma compositora romântica. O equívoco, segundo ela, tem a ver com a desatenção de pessoas que se ativeram apenas ao recente hit “Só Você e Eu”.
Escolhida para ganhar um videoclipe gravado em Nova York, onde a protagonista contracena com os bailarinos americanos Cynthia Irobund e Ryan John, a música entrou para a trilha sonora da novela “A Dona do Pedaço”, da Rede Globo.
“Eu, minha mãe e meus amigos achamos que era a música mais rápida do disco. Ela é romântica, mas não chega a ser lenta, tem uma pegada meio soul brasileira que favorece uma coreografia. Além disso, ninguém quer perder o marketing gigantesco de ter uma música na novela”, admite.
Outra ponte realizada foi com Baco Exu do Blues, rapper baiano que despontou como uma das revelações da música brasileira depois de dois discos bem avaliados pela crítica. “Tenha Dó de Mim” já estava pronta quando Vanessa o convidou para acrescentar novos versos e cantar na faixa, que ganhou uma camada eletrônica. “A música ficou vigorosa”, sintetiza a cantora.
Identidade
Pela primeira vez, Vanessa esteve à frente da produção do álbum, o que permitiu a ela “brincar com os arranjos, timbres e mixagens”. A experiência resultou em um trabalho que reforça a identidade musical da intérprete, pela qual passam reggae, pop, baladas e até um samba de roda do Recôncavo baiano. “Sou do meio do Brasil, desde cedo me acostumei a ouvir folclore e música pop”, afirma ela, nascida em Alto Garças, no interior de Mato Grosso.
Era na cidadezinha de 10 mil habitantes que Vanessa, aos 12 anos, andava de moto e era chamada de “Maria João”, por “não aceitar fogãozinho” e criar “romances entre suas bonecas”. “Revolucionei muito num lugar machista”, relembra. Mãe de três filhos, Vanessa dedica “O Mundo para Felipe” a um deles. E espera que, de fato, algum dia o planeta melhore para ele e seus irmãos. “Não confio nos políticos do Brasil de hoje”, finaliza.
AGENDA
SHOW: “QUANDO DEIXAMOS NOSSOS BEIJOS NA ESQUINA”, DE VANESSA DA MATA, NESTA SEXTA (28), ÀS 21H, NO PALÁCIO DAS ARTES (AV. AFONSO PENA, 1.537, CENTRO). DE R$ 60 (MEIA) A R$ 160 (INTEIRA)
Assista ao videoclipe do novo álbum de Vanessa da Mata: