Cinema

Vencedor da Mostra de Tiradentes, Isaac Donato fala de seu filme, 'Açucena'

Apresentado como um documentário de suspense, o longa foi inspirado na vida de uma idosa que, ano a ano, festeja seu 'aniversário' de sete anos

Por Patrícia Cassese
Publicado em 01 de fevereiro de 2021 | 19:07
 
 
 
normal

O cineasta soteropolitano Isaac Donato, 43, lembra com entusiasmo que foi na Mostra de Cinema de Tiradentes que seu primeiro curta ("Visita Íntima-Revista Corporal", de 2007) estreou oficialmente. Na recém-encerrada 24ª edição do festival, desta vez realizado de forma online, em função da pandemia, foi a vez de "Açucena", seu primeiro longa-metragem de carreira, vir à luz. O dado adicional é que, por meio dele, Donato levou para casa o prêmio de Melhor Filme da Mostra Aurora. Os vencedores, vale lembrar, foram revelados na noite do sábado. 

Na Mostra Olhos Livres, a dupla de cineastas Isael Maxakali e Sueli Maxakali foi sagrada pelo segundo ano seguido, agora com "Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa terra é nossa!" - ano passado, os dois tinham vencido com “Yãmĩyhex – As Mulheres-espírito”. Já a diretora e roteirista Ana Johann levou o Troféu Helena Ignez por "A Mesma Parte de um Homem". Na Mostra Foco, os curtas "Abjetas 288" e "4 Bilhões de Infinitos" foram os vencedores.

Ao falar de "Açucena", Isaac parece se atentar a cada palavra proferida. Explica-se: ele não quer furtar do espectador o prazer de decupar o filme sem sinalizações prévias ou induções de quaisquer tipo. "É um filme para ser sentido, compartilhado" , entende, ao mesmo tempo frisando ser uma experiência de difícil indexação. "Nos releases enviados à imprensa, a produção do evento optou por dizer que 'Açucena' inaugura um gênero de documentário, que seria o documentário de suspense. Mas eu também o citaria como um filme de suspensão do tempo", diz o diretor. 

As críticas já publicadas, por sua vez, têm provado que ele atingiu seu objetivo. "Acertam ao situarem o filme no campo da fantasia, e não da fantasmagoria. Ao inseri-lo dentro de um mistério, mas respeitoso. Ao reconhecerem que esse mistério ali, presente, é da própria história que está sendo contada, e não de um procedimento puramente cinematográfico, de uma operação que tentasse dialogar com os chamados filmes de gênero, de suspense".

E qual seria a história sendo contada? Bem, "Açucena" se detém sobre a história de mulher de 67 anos que, ano a ano, comemora o seu aniversário... de 7 anos, com direito a ganhar bonecas de presente. "É uma história real com a qual a gente tomou contato em 2015, 2016, quando a Marília Cunha, co-roteirista e produtora do filme, estava fazendo uma pesquisa sobre mulheres e patrimônio imaterial. Neste trabalho, ela conheceu dona Guiomar Monteiro, que mora na região metropolitana Salvador", diz, referindo-se àquela que foi a fonte de inspiração para o filme. 

Mas, mais do que a história presente nesta primeira camada, "Açucena", ressalta ele, é um filme sobre a necessidade do ser humano de se colocar em dia consigo mesmo. "Mesmo que produzindo um mundo próprio, que seria aquele no qual ele se sente melhor, no qual se estabelece e se realiza na vida junto aos seus. O longa é sobre esse desejo de a própria personagem central, Dona Guiomar, instituir uma 'realidade interpretada'. E seu grupo social reconhece e legitima essa biografia individual dela (estar sempre comemorando a mesma idade)".

Isaac conta que, em certo ponto, a história de Guiomar se entrelaça também à dele. "Um dado inspirador para que eu me enveredasse nessa narrativa foi a relação com a minha avó materna e com duas tias, mulheres que também celebravam essa alegria que a gente mostra na tela de 'Açucena'. Alegria no sentido etmológico, de 'alacer', aqui significando se libertar das amarras da terra, da idade, do envelhecimento. Celebrando a boa vida, no sentido de ter saúde, de estar com os seus. E com uma tática de aproximação com a sociedade hegêmonica global, pois é o aniversário dela que ressalta essa condição humana de existir e resistir".

Sendo a realidade de Guiomar reconhecida pelo grupo, a história se desenrola suscitando muitas interrogações. Afinal, quem é Açucena? Todos os convidados vão levar bonecas de presente para a festa de sete anos? E esses convidados são adultos? Têm a mesma faixa etária da personagem central? "Num dado momento, uma das poucas crianças do elenco traz uma inquietação que reforça ou responde as dúvidas do espectador. Ela diz: 'Açucena é a cara da minha avó, mas é mais nova que eu'. Em outra cena-chave, uma menina pergunta: 'É um aniversário de quem? É de boneca?'. E as duas amiguinhas respondem: 'Não, não é'. Então, há um jogo narrativo entre o real e o imaginado, e nele se sobressai um mistério dentro da história, o que acaba provocando muito a recepção", avalia o cineasta, que intenta que seu filme coloque o espectador no lugar do sensível "e que ele saia dali com a transformação que a obra sugere".

Vitória do povo Maxacali

Isael e Sueli Maxacali dedicaram o prêmio da Mostra Olhos Livres ao povo que representam. "Não é um trófeu nosso, ele pertence ao povo maxacali inteiro, que merece ser clareado. Porque meu povo estava no escuro e precisa ser enxergado. A demarcação nossa tem que ser cumprida, queremos o território nosso de volta", diz Sueli, referindo-se à aldeia é constituída por várias famílias e instalada no Vale do Mucuri, nordeste de Minas Gerais, quase na fronteira com a Bahia. "Estão tomando a nossa terra", endossa Isael, lamentando. "Sofremos preconceitos de vaqueiros, fazendeiros... Não é fácil".

Sueli fala que o filme enaltece a importância da preservação da memória dos povos originários. "A memória, a história do nosso povo, ela está viva dentro dos pajés. Todos os passos que nosso povo deu. Os cantos preservam  a nossa história, e são eles, pajés, que nunca deixaram os nossos cantos se perderem". Sueli e Isael, vale lembrar, se casaram em 1993, e começaram a se enfronhar no universo do audiovisual em 2004. 

Balanço

A 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes aconteceu de 22 a 30 de janeiro, em formato online. O evento inaugurou o calendário audiovisual brasileiro. Foram exibidos 114 filmes brasileiros (31 longas, 2 médias e 81 curtas) de 19 estados, em pré-estreias mundiais, nacionais e mostras temáticas.

A coordenação curatorial do evento foi assinada pelo crítico Francis Vogner dos Reis que também assinou com a pesquisadora Lila Foster a seleção de longas. A de curtas-metragens ficou a cargo da Camila Vieira, Tatiana Carvalho Costa e Felipe André Silva.

Em nove dias de programação, o evento teve mais de 550 mil acessos no site oficial, vindos de 92 países. A mostra registrou, ainda, alcance de mais de dois milhões nas redes sociais. O evento realizou também o 24º Seminário do Cinema Brasileiro, que contou com 112 profissionais no centro de 24 debates e rodas de conversa. Aliás, todos estão disponíveis no Canal do Youtube da Universo Produção.

 

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!