No caminho para Ouro Preto, onde seria inaugurado um ramal férreo, o então imperador Dom Pedro II e sua esposa Teresa Cristina fizeram uma parada em Queluz de Minas (hoje, Conselheiro Lafaiete), em 1881. A comitiva que os recebeu quis impressionar. Convidou dois dos mais celebrados violeiros da cidade, Luiz Dias de Souza e José de Souza Salgado, que prepararam para os convidados uma serenata memorável. E, para coroar a festa, separaram dois dos melhores instrumentos já produzidos pelos artesãos do município, sendo uma pertencente ao capitão Francisco Furtado, ex-tabelião do 1º ofício de Queluz, e outro de propriedade do Barão de Queluz, João Tavares Maciel da Costa.

Os anfitriões foram bem-sucedidos em seu objetivo. Tanto que Pedro II não deixou de registrar aquele encontro em seu diário de viagens e deu atenção especial às violas, descrevendo traços do instrumento com detalhes. “O imperador tinha o hábito de registrar todos os acontecimentos das suas passagens, e, quando ele escreveu sobre os violeiros, aproveitou para fazer algumas anotações sobre uma viola que era feita com ‘embutidos’ – termo usado por ele para se referir ao trabalho de marchetaria. Isso mostra como o instrumento despertou a curiosidade do imperador”, relata Max Rosa, que é músico, colecionador e luthier, especializado na produção de violões de corda de aço. 

Anos depois, os dois instrumentos entraram para a história, e Rosa havia tomado conhecimento deles apenas por meio de livros. Até que em 2018, ele soube da localização de uma das peças, que estava com outro colecionador residente no Rio de Janeiro. “Ele não tinha nenhuma relação com a viola ou com a cultura de Minas Gerais. Estava com o instrumento porque o achou interessante, bonito, e cheguei até ele, me apresentei; ele conheceu o meu trabalho e reconheceu que aquela viola precisava voltar para Minas Gerais”, situa Rosa, que adquiriu a viola imperial e, em seguida, levou quase um ano para restaurá-la, deixando-a apta para ser tocada novamente. 

O luthier vibrou com a conquista, e, ao encontrar-se com o ex-proprietário do instrumento, teve outra surpresa: “Eu percebi que o colecionador já tinha entrado em contato comigo, dois anos atrás, para fazer um orçamento de restauração de uma viola que era justamente a imperial que eu procurava mas eu nem imaginava que estava com ele. O colecionador também não me mostrou fotos nem trouxe informações suplementares naquela época”, afirma Rosa. De posse da tão sonhada viola, ele logo compartilhou a notícia com o violeiro e amigo Rodrigo Delage com quem compôs o single “Viola de Queluz”. A canção narra a trajetória desse instrumento e está disponível nas plataformas digitais, como Spotify e Deezer. 

Etapas 

Paralelamente, enquanto Rosa trabalhava na restauração da viola em seu ateliê, em Nova Lima, a dupla produzia as bases da música. “Um dia, nós estávamos saindo do estúdio, após fazermos uma primeira gravação dos outros instrumentos e o Max estava feliz com o que tinha ouvido. E eu emendei: ‘E, então, nós vamos conseguir gravar com a imperial?’. Ele disse: sim, vou dar um jeito!”, recorda Delage. Com essa determinação, Rosa precisou ligar para alguns clientes e pedir um prazo maior para entregar os violões já encomendados, porque precisaria se concentrar na restauração mais complexa do que ele imaginava.

“Essa viola enganou muito. Ela estava visualmente bonita, mas estruturalmente estava sem condição nenhuma de ser tocada”, avalia Rosa. De acordo com ele, a cola usada na construção do instrumento, feita a partir de colágeno de origem animal, era perfeita para essa finalidade, mas o insumo é sensível à variações de umidade. “Essa viola teve que ser completamente desmontada. Quanto mais eu ia mexendo, mais peças inteiras se soltavam, porque a cola não segurava mais”, relata. 

Rosa usou o mesmo tipo de material para unir novamente as peças, e, além disso, precisou refazer algumas partes, substituindo pedaços do corpo da viola, assim como algumas delicadas inserções em marchetaria com fios prata e desenhos em madeiras nobres. Um ofício que requer paciência e muita precisão. Quem concebeu esse objeto foi Antônio Gonçalves Martins, que depois viria a ser o mestre do violeiro e artesão José de Souza Salgado. 

Apesar dessas condições, o luthier percebeu que a viola foi muito bem conservada nas primeiras décadas de sua existência. Não havia, por exemplo, marcas de unhas no tampo, como é comum de ser encontrado em violas mais experimentadas. Quando sentiu que podia colocar as cordas e fazer os primeiros dedilhados, ele não hesitou em sacar o celular e gravar um vídeo, encaminhando-o, em seguida, para o compositor Delage. “Eu quis compartilhar aquilo com ele, e disse: escuta aqui comigo, nesse primeiro momento. É o mesmo som que o imperador escutou” A viola está de volta, cantando pra gente!”, lembra com alegria Rosa.

Ele reforça que até hoje a passagem de Dom Pedro II é recordada com orgulho pelos habitantes de Conselheiro Lafaiete. “Foi algo que marcou a cidade. Conta-se até que o imperador gostou tanto do instrumento que chegou a encomendar alguns para sua própria corte. Pra mim, essa foi uma redescoberta muito importante, e eu nunca imaginaria que, depois de 15 anos de pesquisa, eu encontraria a mais importante das violas”, vibra o luthier. 

Um instrumento que também é uma obra de arte

Estima-se que a viola imperial adquirida pelo luthier, restaurador e músico Max Rosa foi produzida entre 1860-1870, em Queluz de Minas (hoje Lafaiete). De acordo com ele, o período em que o instrumento foi confeccionado representa o ápice desse ofício, quando a Vila Real de Queluz é alçada ao status de cidade. No entanto, Rosa ressalta que a tradição em torno da feitura do instrumento é ainda mais antiga nessa região reconhecida como o principal celeiro da viola em Minas Gerais.

“Há registros de construtores de viola na Vila de Queluz desde 1800. Muitas delas eram feitas em fazendas, de modo meio espaçado, até que se formou uma primeira geração de artesãos naquele local”, pontua Rosa. 
Desse grupo, faz parte Antônio Gonçalves Martins, o criador da peça que agora integra o acervo de Rosa. O colecionador acredita que mestres, a exemplo de Martins, não podem ser entendidos como luthiers – termo usado para designar os profissionais que se dedicam à produção de instrumentos de cordas.

“Os luthiers são aqueles que têm uma técnica apurada de construção de instrumento de corda. Mas no caso de violas, como a imperial, esse termo não se aplica, porque ela é um instrumento que vai além disso. Ela é um instrumento-arte. Ou seja, o artesão não pensa só na estrutura, na funcionalidade do objeto, mas também no seu aspecto artístico. Por isso, essas violas têm um alto valor colecionável. Cada artesão, inclusive, imprimia um desenho diferente nos seus trabalhos”, explica Max Rosa. 

De acordo com ele, esse modo de produção, contudo, se tornou inviável a partir de meados dos anos 50. “Começou a surgir uma concorrência maior, com a chegada de fábricas. Elas criaram instrumentos mais fáceis de serem afinados e esses conquistaram espaço pela praticidade”.

Diferentes toques de viola inspiram canções de violeiro

Rodrigo Delage conta que começou sua trajetória de músico estudando violão, mas, após conhecer a viola, tornou-se um aficionado pelo instrumento muito emblemático para a cultura mineira. Assim, desde 2002, quando lançou seu primeiro álbum, ele faz questão de dedicar-se ao repertório violeiro, e, mais do que isso, busca pesquisar toques específicos, tipicamente mineiros, mas à beira do esquecimento. Não à toa, é ele quem toca a viola imperial do single “Viola de Queluz”, composto por ele e Max Rosa, com participação de Célio Balona (acordeom), Leo Pires e Sérgio Rabello, além de direção musical de Geraldo Vianna.

“Já no meu primeiro disco eu fiz questão de gravar uma música com uma viola de Queluz que comprei num antiquário e depois descobri ter sido feita por José de Souza Salgado, no início do século XX. Eu queria deixar aquilo gravado como um registro histórico”, conta Delage.

De lá pra cá, ele segue propondo tal abordagem de um legado, a seu ver, muito rico. “Cada vez mais temos jovens que estão aprendendo viola hoje. Mas eles costumam buscar mais o som do Tião Carreiro, o pagode de viola, a catira e o recortado. Os toques de viola do interior de Minas, da região Norte do Estado, e que estão muito ligados à natureza, quase não são procurados”, diz o músico.

Por isso mesmo, ele propõe, por meio do seu trabalho, estimular a realização de uma espécie de inventário. “E há ainda um grande potencial para fazermos um registro sonoro, visual, acústico e literário de tudo isso, porque os violeiros sempre têm uma história para contar sobre esses toques”, relata Delage.