Música

Vozes dissonantes falam de um marco da bossa nova

'Chega de Saudade', de João Gilberto, completa 60 anos neste mês de março, e artistas de outras praias musicais comentam seu legado

Por Daniel Barbosa
Publicado em 18 de março de 2019 | 03:00
 
 
 
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Tanto as composições de Vinicius de Moraes e Tom Jobim quanto a singular batida do violão de João Gilberto já estavam presentes no álbum “Canção do Amor Demais”, que Elizete Cardoso lançou em 1958, mas foi "Chega de Saudade”, disco que marcou a estreia de João como artista solo, lançado em março de 1959, que acabou identificado como o título emblemático da bossa nova. A partir dali, a química alcançada pelos três artífices do gênero ganhou o mundo.

Neste momento, em que se comemoram os 60 anos de “Chega de Saudade”, a bossa nova segue desfrutando de prestígio mundial e sendo consumida nos quatro cantos do planeta. Mas, para além dos diletantes, até onde vai o alcance do gênero? Para tentar responder a essa pergunta, o Magazine entrevistou músicos cujas trajetórias e ambientes pelos quais transitam não têm nada a ver com a bossa nova.

Flávio Renegado hoje pratica uma música matizada, que engloba vários elementos, mas sua base continua sendo o hip-hop – ambiente a partir do qual se projetou. Alan Wallace é guitarrista e um dos fundadores do Eminence, que é, hoje, o grupo de metal radicado em Minas com maior projeção, tanto no Brasil quando no exterior. Chico Lobo é violeiro e um dos maiores expoentes da música caipira no Estado. Silvio Viegas é o regente titular da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, e sua formação, claro, se deu na seara da música erudita. São essas quatro vozes dissonantes do ambiente da bossa nova – que, a propósito, tem nas dissonâncias uma de suas características marcantes – que falam sobre sua relação pessoal com o gênero e sobre as razões que fazem dele um cartão de visita da música brasileira no mundo.

Flávio Renegado

Qual é a sua relação com a bossa nova? Primeiro, acho que todo brasileiro tem alguma relação com a bossa, pelo menos uma música do Vinicius e do Tom você já ouviu. O disco “Os Afro Sambas” (Vinicius de Moraes e Baden Powell, lançado em 1966), que têm uma relação estreita com a bossa nova, tem uma importância grande para mim. Outra relação passa pelo Toquinho, porque ouvi muito músicas como “Aquarela” quando era criança.
O que, na sua opinião, justifica o prestígio mundial de que o gênero ainda hoje desfruta? É uma alquimia muito perfeita, porque você pega o samba e o traz para a vitrine. O samba é um gênero genuinamente brasileiro, é o lugar de fala do negro, mas a música é generosa, você consegue se alinhar com ela de onde você estiver, então os caras da classe média que estavam a fim de tocar aquele som acabaram fazendo do seu jeito, trouxeram o jazz, as harmonias sofisticadas para dentro do processo, daí você imagina a revolução que foi isso naquela época.

Alan Wallace

Qual é a sua relação com a bossa nova? Por incrível que pareça, cresci ouvindo bossa nova. Eu nasci no Rio de Janeiro e até os meus 6 ou 7 anos vivi lá, morava com minha mãe em Copacabana, num apartamento onde também moravam uns tios meus. Eles ouviam muito João Gilberto, Tom Jobim, João Bosco, Toquinho, então escutei muito isso tudo quando criança. Me desviei, felizmente, porque, se não, o Eminence não existiria. Mas ainda acho a bossa incrível.
O que, na sua opinião, justifica o prestígio mundial de que a bossa nova ainda hoje desfruta? O ritmo da bossa nova cativa muito as pessoas, as notas, as letras, é tudo muito envolvente, é uma musicalidade marcante. É um gênero que dialoga com o jazz, então quem escuta uma coisa escuta a outra. Não tem como não gostar de bossa nova. Não tem como você ouvir e dizer que não é uma música bem feita, envolvente e que, sobretudo, tem identidade, o que é importantíssimo.

Chico Lobo

Qual é a sua relação com a bossa nova? Em São João del Rei, de onde eu sou, a gente sempre recebeu muita influência do Rio de Janeiro. Então, a gente escutava bossa, e meu pai, que sempre foi grande seresteiro, passou a ouvir também. Depois, já em BH, com carreira na música, me casei com uma carioca, a Ângela Lopes, que também é minha produtora. Ela veio com todo esse arsenal da bossa nova. Isso é uma influência para mim.
O que, na sua opinião, justifica o prestígio mundial de que a bossa nova ainda hoje desfruta? Eu acho que é uma questão de musicalidade mesmo, são belos acordes. É um gênero que propôs linhas melódicas um pouco mais sofisticadas do que aquilo que se fazia antes, que vinha dos cantores do rádio, dos seresteiros. Também tem a questão dos temas, como a abordagem mais cotidiana do amor e a cidade do Rio de Janeiro, que é um símbolo do Brasil. Acho que tudo isso contribuiu para que a bossa chegasse com força ao mundo todo.

Silvio Viegas

Qual é a sua relação com a bossa nova? Claro que, como qualquer músico, conheço a história da MPB, de forma geral. Não tem como não conhecer a obra de Vinícius, de Tom, e o João Gilberto entra como o grande intérprete dessa música. Teve um historiador que, certa vez, disse que, mais do que intérprete, João era um “recompositor”, porque dava uma personalidade muito forte às composições alheias.
O que, na sua opinião, justifica o prestígio mundial de que a bossa nova ainda hoje desfruta? O grande lance da internacionalização da bossa é que ela tem como base o samba, que é muito refinado do ponto de vista da harmonia e é rico do ponto de vista poético. Quando João Gilberto começa a dar uma nova interpretação para o samba, com aquela voz pequena, e muda a forma de tocar, inovando a rítmica no violão, e ainda fazendo uma conexão com o jazz, ele juntou os ingredientes para esse boom internacional que acabou acontecendo.

 

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