CONFIANÇA

Gentileza, confiança e paciência: entenda por que mercado gosta de porteiros 60+

Em Minas Gerais, são mais de 6.000 profissionais nessa faixa etária, 13,34% do total registrado no setor; essa é a quarta função que mais emprega pessoas 60+ no Estado

Por Raíssa Pedrosa
Publicado em 05 de maio de 2024 | 22:30
 
 
 
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Acordar às 4h50, pegar o ônibus das 5h40, atravessar a cidade e chegar cedo para, às 7h, assumir o plantão de 12 horas na portaria do prédio comercial Edifício Helena Passig, no Centro de Belo Horizonte, por onde passam mais de de 1.500 pessoas por dia. Essa é a rotina, a cada dois dias, de Wilson Lourenço de Oliveira, 67 anos, funcionário do condomínio desde 1986. O profissional é um dos mais de 6.000 porteiros com mais de 60 anos em Minas Gerais. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), essa é a quarta função que mais emprega profissionais 60+ no Estado - de todos os porteiros registrados, pelo menos 13,34% estão nessa faixa etária. (veja ranking no fim da matéria)

Trata-se de uma profissão cheia de desafios. Trabalhar com atendimento ao público exige atenção, gentileza, paciência, controle emocional e firmeza no cumprimento das normas. Habilidades que, na opinião do advogado especializado em direito imobiliário Kênio Pereira, muitas vezes faltam em pessoas mais jovens e tendem a prevalecer em pessoas mais experientes. Essa é, inclusive, uma das hipóteses para a predominância de profissionais 60+ entre os porteiros. “Porteiro é um cargo de confiança. E pessoas mais maduras transmitem isso”, sugere.

Para Wilson, apaixonado pela profissão, o porteiro é o “espelho” do condomínio, afinal é o primeiro contato com o visitante. “Ali entram pessoas de todas as faixas de idade e classe social. Por exemplo, idosos, que a gente tem que ter um certo carinho, pessoas com deficiência… é um tratamento, assim, como se fosse dentro da casa da gente”, compara. “Tem que ser igual para todo mundo.”

No entanto, apesar de exigir diversas habilidades e ser uma categoria que coleciona profissionais apaixonados pelo ofício, a profissão de porteiro tem uma remuneração “modesta”, o que leva os trabalhadores a investir em duplas jornadas (ou seja, ter dois empregos). A reportagem de O Tempo conversou com três profissionais da área. Todos eles, mesmo com mais de 60 anos de idade, ainda enfrentam ou já enfrentaram a dupla jornada para garantir uma renda que sustente a família.

“Me encontrei nessa profissão”

O primeiro contato de Wilson com um condomínio foi aos 17 anos, quando começou a trabalhar como ascensorista em um prédio no Centro de BH, onde ficou por cerca de dois anos. Entre idas e vindas em outros ofícios, Wilson voltou a ter contato com condomínios 38 anos atrás, quando voltou a atuar como ascensorista, no Helena Passig, função que ocupou por 18 anos, até que conseguiu a oportunidade de ser porteiro no mesmo prédio.

Ele conta que se sentia preparado para a profissão de porteiro por ter tranquilidade, boa comunicação, boa caligrafia e disposição para o ofício. “Eu acho que se um dia eu sair de lá, eu não sei qual vai ser o estilo do meu choro. Se vai ser de alegria por trabalhar por mais de 50 anos ou alegria poder ter desenvolvido um trabalho tão bonito, tão abençoado, que é tratar as pessoas bem”, diz.

Wilson conta que chegou a ter jornada dupla, trabalhando na portaria de dois condomínios ao mesmo tempo. Mas, por volta dos 60 anos, a rotina ficou pesada para a idade e ele passou a atuar apenas no Helena Passig. “Eu vinha em casa, às vezes, só para pegar a marmita”, relata. Apesar do cansaço, deixar o último emprego por conta própria não foi tarefa fácil. “Eu chamei o síndico chorando igual menino, porque eu gostava de lá e o pessoal se acostumou comigo, sabe? Eu saí de lá aos prantos”, recorda. 

Pai de três filhos e avô de quatro netos, atualmente aposentado, Wilson diz que continua trabalhando por prazer. “Tem 18 anos que eu estou aposentado. Eu não estou ali trabalhando com a necessidade do dinheiro. Eu trabalho porque eu gosto, é uma das profissões que eu me encaixei mais, porque eu gosto de ajudar o próximo, ajudar as pessoas. Eu me encontrei nessa profissão”, declara.

Dupla jornada

Quem também é apaixonado pelo que faz é Marco Antônio Nogueira, 60 anos. Zelador em um condomínio no Centro de BH e porteiro noturno em outro prédio no Lourdes, ambos residenciais, ele vê a profissão como uma função que exige alta confiança e profissionalismo. “Você trabalha zelando pelo bem de terceiros e tem a confiabilidade dos moradores, você sabe muita coisa confidencial deles. É uma profissão que exige muito da capacidade intelectual, psicológica e até espiritual”, avalia.

Aos 60 anos e pai de cinco, Marco Antônio trabalha em dois prédios -  Foto: Fred Magno/O TEMPO

“É muito importante a pessoa ser profissional. A portaria não é só o porteiro ficar sentado ali, conversando, batendo papo. Você recebe encomenda, recebe valores, recebe correspondências. E, além disso, precisa lidar com vários tipos de conflitos. É uma luta diária de 12 horas em que você fica sentado na portaria lidando com vários tipos de problemas”, opina.

Em um dos condomínios em que trabalha, Marco Antônio foi contratado há 28 anos, quando começou como faxineiro. E ele nunca mais se viu fazendo outra coisa que não fosse cuidar do lar de outras pessoas. Pai de cinco filhos, sendo quatro adultos e uma menina de quatro anos, o profissional conta que a jornada dupla, que ele vive há 14 anos, é necessária para garantir uma renda que atenda às necessidades da família.

Marco Antônio revela que conhece muitos companheiros de profissão que também atuam em dupla jornada. “O salário não é ruim, ele atinge o necessário para a subsistência da casa. Mas não dá para você sobreviver com um salário de R$ 1.700, R$ 1.800, então a gente tem que fazer uma jornada dupla, ou até tripla, para recompor a renda”, desabafa. Conforme convenção coletiva da categoria (Sindeac e Sindicon), o piso salarial atual é de R$ 1.891,56 para porteiros. Quem trabalha à noite recebe 30% de adicional noturno após às 22h. Vale lembrar que, por força da escala, porteiros trabalham frequentemente em feriados, como o Natal.

No dia em que trabalha à noite (escala 12h/36h), a jornada de Marco Antônio ultrapassa 30 horas de trabalho seguidas - emendando dois dias de trabalho como zelador, em horário comercial, com a função de porteiro noturno. Mas, apesar do cansaço diário, a profissão, segundo ele, traz diversos momentos de alegria.

“Nós recebemos vários elogios e muita energia positiva. As pessoas se lembram do seu aniversário. Lembram-se de você numa data comemorativa, como o dia porteiro, o dia do zelador. Às vezes a pessoa traz um bolinho, um presente de final de ano. Eu acho essa interação do condômino com o porteiro genial”, diz.

Condomínio não, é quase uma cidade

Já a missão de Daniel Silva Cássia, 62 anos, é cuidar da portaria de um condomínio com mais de 400 apartamentos e, certamente, mais de 1.000 moradores, no Santa Amélia, região da Pampulha. Porteiro noturno, ele afirma que o maior desafio é conhecer cada morador em um condomínio tão grande. Há dez anos na profissão, Daniel é folguista nesse condomínio há cinco (cobre férias, licenças e afins) e trabalha fixo em outro condomínio residencial da região, também no período noturno.

O profissional conta que já trabalhou com uma jornada muito mais exaustiva no passado, quando era vendedor. “Eu vendia de tudo”, conta. A profissão de porteiro veio como um ofício mais “calmo”, com salário fixo e que não exige trabalho braçal. Divorciado, ele mora com as irmãs e afirma que a dupla jornada em dois condomínios é uma segurança financeira. E, em seu tempo de folga, quando está na rotina dupla, passa quase todo o dia dormindo para compensar a noite em que ficou acordado.

Daniel conta que, apesar de ser um ofício menos corrido como os que trabalhou anteriormente, ser porteiro exige habilidades que poucos têm. E uma delas é lidar com o ser humano. Quando um morador chega querendo brigar muito, Daniel diz que age com frieza para não perder a razão. “A vontade é de ter um embate, né? Na mesma altura. Mas a gente não pode. Lidar com o ser humano é muito difícil, porque muitas vezes a pessoa quer alguém pra discutir. Então, se você só escuta a pessoa, daí um tempo ela se acalma, né?”, conta. 

Uma situação comum em condomínios é o morador perder a chave ou ter problemas para fazer reconhecimento facial (que é o caso do condomínio do Santa Amélia) e precisar pedir para o porteiro liberar a porta. O problema é que muitos não têm paciência para esperar essa identificação e acabam brigando com o porteiro.

“Caso o sistema falhe e eu não possa verificar, eu vou pedir a documentação da pessoa, né? Mas, de forma alguma, ninguém pode adentrar ao condomínio, principalmente de madrugada, sem a devida identificação. E às vezes, por causa disso, o morador se irrita”, conta. O segredo, segundo Daniel, é não deixar se envolver pela situação.

“Skills” que só os 60+ têm

Na visão do advogado Kênio Pereira, profissionais com mais de 60 anos têm habilidades para a função de porteiro que muitos jovens não têm. Uma delas é “jogo de cintura” para enfrentar situações adversas. “A pessoa idosa, pela vivência, pela experiência de vida, é mais paciente. Ela sabe, às vezes, contra-argumentar sem agredir. O jovem não está acostumado a ser contrariado”, compara.

“A gente está passando por uma situação no mundo da impaciência, do imediatismo. Se a pessoa desagradou, retruca! Quer dizer, essa falta de empatia, essa falta de paciência, ela é encontrada com a pessoa mais jovem. E por que o porteiro tem que ter uma paciência fora do comum? Porque ele mexe com todo tipo de gente”, pontua.

Outro ponto levantado por Kênio é o fato de que porteiros mais maduros têm menos rotatividade. E ter menos rotatividade é muito importante nessa função, afinal, somente com o passar do tempo é que o porteiro absorve todos detalhes sobre o lugar e sabe de cor cada regra, conhece cada morador e domina o ambiente.

“O jovem é ansioso, não sabe o que quer e não tem medo de perder o emprego. Então, funções mais simples com salários mais modestos têm muita rotatividade”, diz. “A pessoa mais madura não. Ela é mais estável, né? Ela quer uma coisa mais tranquila e ela sabe que conseguir emprego é muito difícil para a faixa etária dela. E a portaria é um emprego que se adequa muito bem a pessoas mais maduras”, diz.

Além disso, segundo Kênio, há muitos profissionais atuando em portarias para complementar a renda da aposentadoria, que em muitos casos não supre a necessidade da família. “Os salários de porteiro são mais modestos, né? Então, às vezes, as pessoas têm mais facilidade de contratar uma pessoa madura que está aposentada do que um jovem que, às vezes, vai achar que o salário não é atraente”, diz.

Respeito à profissão

Kênio pontua que a profissão de porteiro exige muitas habilidades, mas que também pede muito respeito. É muito comum vivenciar situações de conflito entre moradores, visitantes e porteiros. Em grande parte dos casos, o profissional é agredido apenas por estar fazendo seu trabalho: garantir a segurança e a ordem do condomínio.

“As pessoas têm que ficar mais conscientes de que elas têm que dar autoridade para o porteiro”, conta, lembrando que condomínios da região Centro-Sul de BH, por exemplo, têm sido alvo de assaltos, o que leva à máxima atenção dos porteiros e ao cumprimento de diversas regras que muitos moradores não entendem e não aceitam - como não deixar entregadores de delivery entrarem no prédio.

“O porteiro tem uma certa dificuldade porque ele é uma pessoa mais simples, e sempre o condomínio vai ter aquelas pessoas mais arrogantes que acham que o mundo tem que girar a favor delas. E tem aquelas que não aceitam ser contrariadas e qualquer coisa que as contraria, elas brigam, e isso inibe o porteiro, que acaba cedendo porque o morador tira a autoridade dele. Muitos condomínios são assaltados em função da falta de apoio dos próprios moradores.”

Por fim, ele frisa que o porteiro é o profissional que vai garantir a tranquilidade que o morador precisa. “Eu tenho que ter tranquilidade, eu tenho que ter serenidade, porque o lar é o um local sagrado, é o local que você tem que ter segurança e tranquilidade”, diz. “Um dos motivos que leva as pessoas a não morarem em casa mas, sim, em condomínios é esse fator segurança. E o porteiro contribui para isso e precisa de autonomia para exercer seu trabalho”, defende.

Relatos da portaria

Wilson conta que, uma vez, salvou o prédio de um incêndio porque um condômino jogou uma guimba de cigarro acesa no alçapão onde se jogava o lixo - um local por onde passavam também cabos de energia. Um colega de trabalho que viu primeiro a fumaça no local chegou a jogar dois baldes d’água, mas, depois, Wilson viu que logo abaixo dos sacos de lixo havia ainda muitas chamas. Ele mesmo tirou o uniforme e correu para apagar o fogo. “Gastei uns dez baldes”, lembra.

Marco Antônio revela que já presenciou de tudo no condomínio, desde brigas de casal, em que precisou intervir, até mortes - quando teve que ajudar a transportar o corpo de um morador no elevador. 

Daniel conta que já foi “babá” por um dia. Em um dos condomínios por onde passou, os pais de uma criança de 3 anos a deixaram sozinha no apartamento para ir à balada. A criança foi levada para a portaria e ele teve que ajudar a tomar conta dela enquanto esperavam a chegada da polícia e do Conselho Tutelar.

Confira o ranking das 10 profissões que mais empregam o público 60+ em MG

Profissão - percentual de pessoas 60+ empregadas

  1. Trabalhador De Serviços De Limpeza E Conservação De Áreas Públicas - 15,60%
  2. Vigia - 15,36%
  3. Motorista De Ônibus Urbano - 13,69%
  4. Porteiro De Edificios - 13,34%
  5. Motorista De Carro De Passeio - 12,43%
  6. Pedreiro - 11,78%
  7. Trabalhador Da Manutenção De Edificações - 9,44%
  8. Faxineiro - 9,31%
  9. Trabalhador Agropecuario Em Geral - 9,29%
  10. Dirigente Do Serviço Público Estadual E Distrital - 8,79%

 

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